Imaginem um mundo onde culpa, arrependimento, luto e qualquer tipo de dor se materializasse. Uma vontade divina (ou profana) trouxe para luz as bênçãos da vida, mas também os pecados da alma. Essa maldição, que desceu à Cvstodia, passou a ser chamada de “Milagre”. Na jornada por esse mundo sombrio, encarnamos o papel do Penitente. Um sobrevivente do massacre do “Sofrimento Silencioso” que carrega uma espada forjada da dor e do arrependimento, chamada Mea Culpa. Nosso personagem leva consigo um terço em sua mão e usa uma máscara cravejada por uma coroa de espinhos e um capirote – uma espécie de chapéu pontudo, em forma de cone, usado como uniforme em algumas irmandades religiosas na Espanha. Cabe ao Penitente por um fim a maldição que assola Cvstodia.
É com essa forte pegada religiosa que o estúdio espanhol The Game Kitchen desenvolveu o competente Blasphemous. Fruto de uma campanha do Kickstarter, o game foi publicado pela Team 17, em setembro do ano passado. Trata-se de um jogo de ação e plataforma 2D, com gráficos em pixel art e elementos de exploração num mapa gigantesco, não linear e interligado. Ou seja, estamos diante de um jogo que mergulha fundo no bom e velho – mas sempre bem-vindo – Metroidvania.
Desenvolvimento: The Game Kitchen
Distribuição: Team17
Jogadores: 1 (local)
Gênero: Ação, aventura, plataforma
Classificação indicativa: 16 anos
Português: Legendas e interface
Plataformas: PC, PS4, Switch e Xbox One
Duração: 13 horas (campanha)/ 25.5 horas (100%)
As sacras mecânicas de Blasphemous
O jogo foi muito bem ambientado, com belos gráficos 2D que reproduzem com muita competência a temática soturna e gótica ao qual se propõe. Da mesma forma, a trilha sonora é magnífica e ajuda em nossa imersão, sendo um elemento importante que nos permite adentrar nesse mundo macabro. Os cenários são bem variados – passando de catedrais a florestas – e remetem a um lugar devastado e solitário. No jogo, a impressão que temos é que estamos revisitando algum período dentre os mil anos da Idade Média. Porém, Cvstodia não está sobre o controle de uma instituição religiosa, que indica o caminho a seguir, monopoliza o conhecimento e expurga os pecados. O mundo aqui ruiu e se corrompeu pela maldição. Nosso personagem pode ser visto como a materialização da tentativa de retomada desse controle perdido. Aquele que através da penitência busca redimir as pessoas e o mundo de seus próprios pecados.
Há alguns anos atrás, quando os jogos eletrônicos não eram tão populares quanto hoje, a dificuldade elevada era um componente importante na programação dos games para manter a sua longevidade. O avançar das fases se dava através de uma dobradinha infalível: tentativa e erro. Com o passar do tempo, a indústria foi substituindo a dificuldade exagerada por uma trama mais bem elaborada. Porém, a série Dark Souls resgatou parte desse elemento no gameplay. Blasphemous, assim como outros metroidvanias – como Hollow Knight – segue essa cartilha Souls-like: é desafiador, punitivo, mas também muito divertido.
No jogo existem cinco elementos básicos a nossa disposição: os pulos, o golpe com espada, os especiais, a investida com esquiva (muito importante nos combates) e os bloqueios (que se executados no tempo correto te permite um parry). Esse último não foi muito bem implementado e é de difícil execução. Mas, quando bem aplicado, aumenta a força do golpe e pode atordoar alguns inimigos, nos possibilitando finalizá-los com uma execução bem criativa e violenta. Os controles, apesar de simples, falham em alguns momentos. Como se trata de um jogo que pune o menor dos erros, essa imprecisão pode trazer alguns momentos desagradáveis e frustrantes, principalmente nas lutas contra os chefões. Mas, em hipótese alguma estraga a experiência.
Apesar de não apresentar tanta variedade como em outros jogos do gênero, em Blasphemous temos uma árvore de habilidades que gira em torno da espada Mea culpa. Contamos, basicamente, com cinco técnicas de combate que podemos ir desbloqueando, ao longo de nossa jogatina, nos diversos santuários que encontramos no jogo. Conforme aumentamos a força da Mea Culpa podemos aprender variações mais poderosas desses ataques, gastando as chamadas “Lágrimas de Redenção”. Uma espécie de moeda do jogo que vamos adquirindo conforme derrotamos os nossos inimigos e, além de desbloquear novas habilidades para nossa espada, serve para comprar itens como contas de Rosário.
Não se perca nos labirintos
O layout do HUD do jogo é simples e funcional. No canto superior esquerdo da tela temos o tipo de coração que a espada Mea Culpa carrega (que modifica suas propriedades), nossa barra de vitalidade e de fervor – que se consome toda vez que que evocamos alguma oração (golpes especiais) – e frascos biliares, que servem para recuperarmos um pouco de nossa vitalidade. Já no canto superior direito temos a quantidade de lágrimas de redenção que possuímos. Alguns NPC’s importantes na trama possuem dublagem e todas as poucas linhas de diálogo (o Penitente é adepto do voto de silêncio) estão legendadas em nosso idioma, assim como os menus que foram totalmente localizados.
Para prosseguir nos labirintos e avançarmos no jogo, devemos ficar atentos a pontos de salvamento que recuperam nossa vitalidade e o conteúdo dos frascos biliares. Esses pontos estão espalhados pelo mapa e são chamados de “Prie Dieu”. Mas devemos ficar atentos, porque não só nossa vitalidade é recuperada ao descansar sobre esse pequeno santuário de oração. Da mesma forma, os inimigos mortos ressurgem no cenário, aumentando a dificuldade. Quando morremos nós sempre voltamos para o último Prie Dieu que visitamos e um espectro azulado do Penitente surge no ponto do mapa em que falhamos, representando a culpa pela falha em sua missão. Sob o peso da culpa acumulada, a nossa barra de fervor diminui, assim como o ganho de lágrimas de redenção. Para restaurá-los, temos que coletar os fragmentos de culpa ou encontrar santuários que aliviem nosso fardo.
O mapa é gigantesco e apresenta labirintos não-lineares e interconectados, onde certas áreas só passam a ser acessíveis depois de se adquirir certo item ou habilidade. Até o último dia 3 de agosto o mapa apresentava alguns problemas que atrapalhavam a experiência, como um design que dificultava a nossa localização nele, a impossibilidade de colocar marcadores personalizados e a ausência do percentual de área descoberta. A expansão gratuita The Stir of Dawn, que veio acompanhada de um patch de atualização, corrigiu esses problemas e trouxe outras grandes mudanças ao jogo. O comportamento de alguns inimigos foi balanceado. Um novo modo – chamado Puro Suplício – foi adicionado depois que terminamos o jogo. E até mesmo certos sprites de animações e o layout de alguns cenários foram revistos. Um claro aceno ao feedback obtido da comunidade que vêm jogando o game desde o seu lançamento.
Uma blasfêmia divertida
Uma das coisas que mais tenho fascínio, dentro de obras fictícias, são narrativas com temáticas religiosas e a forma como elas se relacionam com algum elemento de nossa própria história. Mas, geralmente, o jeito como elas são desenvolvidas acabam gerando polêmicas. Contas de Rosário que dão poderes diversos a nosso personagem, relíquias que nos concedem graça, itens de missões que exploram o sagrado e nos permitem avançar na trama, orações que se materializam em golpes poderosos. O mundo de Blasphemous é sombrio, violento e cheio de referências nada sutis a liturgia de uma das três religiões do livro: o Cristianismo. Algo, que pode gerar certo desconforto para uns e horas de diversão para outros. Ou os dois, quem sabe?! Uma coisa é certa: o jogo é excelente!
Esta review foi feita com uma cópia de Switch cedida pelos produtores
Revisão: Jason Ming Hong