Buscar o sentido da vida nunca foi tão profundo e poético como em Where Cards Fall (2021). Entre uma bela narrativa e visuais encantadores, existe um puzzle bonito, satisfatório e desafiador. E é nesses dois pilares em que o jogo se sustenta. Um jogo bonito artisticamente e que desafia o jogador é a premissa. Como resultado, é um game bem ousado e que pode conquistar a atenção de muitos, mas causar a desistência de outros tantos por mecânicas meio defasadas.
Em busca de algo bem relaxante e agradável aos olhos e ouvidos, ao mesmo tempo que faz pensar e refletir no seu conforto? Esse é o jogo certo.
Desenvolvimento: The Game Band
Distribuição: Snowman
Jogadores: 1 (local)
Gênero: Puzzle
Classificação: 12 anos
Português: Legendas e interface
Plataformas: PC, Switch, iOS
Duração: 5 horas (campanha)/12.5 horas (100%)
Uma ode à vida (e às cartinhas)
O começo de Where Cards Fall é um puro conforto: um quintalzinho aconchegante, onde a neve cai lentamente ao som de um piano calmo e lento e, no chão, há diversas cartas escuras espalhadas. Ao entrar na porta que surge gradualmente na frente do personagem que você vai acompanhar pelas próximas horas, ele se encontra em sua casa, um cenário bastante presente ao longo da história.
De cara, percebe-se que a história a ser contada é da própria vida do personagem que estamos controlando. E que, sim, essa história pode ser bastante tocante, emocionante em algumas partes. O que surpreende nisso é que o enredo inteiro independe de palavras e/ou uma narrativa verbal. Tudo é contado por meio de linguagem corporal, com a ajuda total dos cenários, e por olhos nas paredes que representam personagens mais ou menos importantes na vida do personagem principal que controlamos.
Quem é millennial e passou por altos e baixos na infância e adolescência e constantemente se questiona na vida pessoal, profissional e até amorosa durante a vida adulta, pode se identificar muito. Cabe aqui apenas o alerta de gatilho para o uso de drogas ilícitas. É possível até mesmo enxergar certas críticas socioeconômicas no decorrer da história, dando um gostinho a mais ao conjunto da obra.
A narrativa, contudo, não acontece na jogatina e, sim, em interlúdios do jogo. Abrem-se portas no final de cada nível e, conforme o personagem as adentra, uma nova fase ou momento da sua vida é contado com delicadeza visual, com toda a elegância de não precisar usar a linguagem verbal, somando à direção de arte incrível. Porém, algo que pode ser um pouco frustrante é a falta de interações que os cenários desses interlúdios possuem. Não ter extras na hora de sair do ambiente de raciocínio e foco total acaba não contribuindo tanto para o fator relaxamento ou criando cenas tão duradouras a ponto de emocionar o jogador de verdade, apesar de existir um bom equilíbrio nesse sentido.
Os castelos de cartas e o quebra-cabeça
Toda a criatividade apresentada por Where Cards Fall é a da capacidade de montar castelos e construções retangulares de tantos andares de cartas e fazer disso um puzzle de múltiplas dificuldades. A ideia é simples, mas conforme se avança na história, é perceptível a genialidade dessa proposta de game design.
Só é possível usar espaços múltiplos de 2 quadrados do cenário, com grupos de cartas que podem se mover pelo cenário e que, por sua vez, ocupam no mínimo quatro desses espaços, se abertas. O mínimo é ter apenas um andar, mas há grupos de cartas que chegam a até 5 andares (!). Também existem os grupos de cartas que formam uma casa de cartas e que facilitam a movimentação do personagem na sua parte superior.
Por essa lógica, é possível empilhar edifícios de cartas, usar edifícios especiais que suportam o vento (adversidade do ambiente), usá-los para pular de um para o outro ou para plataformas do cenário.
Citando os gráficos e artes, um dos pontos mais fortes de Where Cards Fall, os cenários se apresentam em belos ambientes externos, por vezes bucólicos, por outras bem urbanizados. Todos eles são artisticamente tão satisfatórios que são boa parte do fator videogame enquanto ponto de paz do jogador, aliando-se a um design de áudio bem feito e à trilha sonora suave e reconfortante. Esses visuais variam em assets e cores com bastante frequência. Talvez esse seja o fator especial que favorece o interesse e o vigor contínuo do jogador do começo ao fim, além da opção de ajuda no menu (explicada nos próximos parágrafos).
Resumindo, Where Cards Fall é um ASMR que você pode usar a qualquer momento para relaxar, ao mesmo tempo que quer aproveitar o tempo com quebra-cabeças complexos e amigáveis.
Os cenários ainda contam com sombras de outros personagens surgindo e esmaecendo o tempo todo, preenchendo os espaços e dando contexto à fase da vida do personagem principal. Outra coisa interessante é observar como o formato de cartas está presente em diversos lugares: nas paredes (internas e externas), nas cadeiras, mesas, tapetes, toalhas de mesa, entre outros. Tudo isso dá uma personalidade muito bacana ao jogo.
Em contraponto às características anteriores, Where Cards Fall parece precisar de um bom polimento (ao menos para a sua versão de Switch), tanto visual quanto mecânicos. Por vezes, são perceptíveis serrilhamentos em paisagens e objetos distantes do centro da tela e o fato que meu personagem ficou preso incontáveis vezes em determinados espaços dos cenários.
Já a dificuldade aumenta de acordo conforme as fases avançam, marcando de forma bem inteligente o crescimento do personagem também. A sacada disso é que os desafios da vida adulta e sua evolução acadêmica/profissional ficam mais difíceis conforme se avança nos níveis (concordam com esse paralelo com a vida real?).
Simples, porém custoso
A jogabilidade se baseia em movimentos do personagem, no seu pulo e na sua descida de/para diversas plataformas, além de toda a movimentação dos grupos de cartas, já mencionada.
As mecânicas lidam de forma brilhante com a capacidade de raciocínio, de tentativas e de criatividade do jogador. E é aí que vive sua magia. A motivação e a satisfação de se ter um puzzle resolvido são imediatas, segurando firme a atenção na tela, incentivando a jogatina a ir cada vez mais longe e provocando a vontade de resolver problemas cada vez mais complexos.
Mencionar as mecânicas sem mencionar o peso delas parece quase impossível. Os movimentos do personagem é um pouco pesado e acaba travando bastante, principalmente quando está em plataformas elevadas e no topo dos castelos de cartas. Por diversas vezes foram encontrados bugs e glitches durante a movimentação do personagem em alguns cenários durante essa análise, mas nem todas exigiram a reinicialização da fase (opção disponível no menu).
Já o elemento acessibilidade é muito bom, mas poderia ter sido melhor, no sentido de trazer opções a quem possui alguma deficiência visual. Where Cards Fall conta com uma opção de ajuda durante os níveis, acionada pelo menu, no ícone da lâmpada. Seu funcionamento é bastante curioso: por vezes, a dica não enxerga que o movimento do grupo de cartas foi feito e o sugere mesmo assim, obrigando o jogador a esperar a próxima dica, que demora cerca de 20 segundos para liberar; a mecânica dá dicas muito boas para destravar o jogador em qualquer dificuldade que possa surgir e; essa não entrega a resposta com obviedade, ou seja, em níveis mais difíceis, apresenta-se apenas o caminho para alguma plataforma ainda não alcançada e a finalização é por conta de quem joga, por simples dedução.
É legal encontrar esse cuidado que os desenvolvedores tiveram com diversas mecânicas e controles, mas um polimento mais atencioso poderia elevar bastante a qualidade da jogabilidade, com toda certeza.
É só isso?
Where Cards Fall é muito bem resolvido e estabelecido como jogo de puzzle “crânio” e disposto a entregar uma história tocante. Mas o tempo todo é meio aparente a sua tentativa de alcançar sempre mais: a cada nível há uma nova expectativa de se ver coisas novas (e que possam ir um pouco mais além). Expectativas essas que acabam sendo frustradas, pois ele acaba entregando mais do seu “pacote básico” já esperado e bem resolvido mesmo.
Todo o crédito ao jogo tão formoso que seus desenvolvedores independentes conseguiram criar (e fazer dele uma graciosidade), claro. Vale a pena jogá-lo, e não crucificá-lo. Talvez a falta de orçamento e mais tempo de produção podem ter causado a impressão que fica: que se espera sempre mais, mas suas limitações acabam apagando todo e qualquer enaltecimento que possa alavancá-lo diretamente para o encantamento constante do jogador.
Veredito
No fim das contas, Where Cards Fall é um produto incrivelmente relaxante e sonoramente agradável. Na dose certa de dificuldade dos quebra-cabeças, ele preserva a diversão e toda sua energia de paz e descanso com sucesso. Difícil demais sair do jogo com alguma tensão ou estresse, mas muito pelo contrário.
O indie é ótimo para se afundar em momentos relaxantes ou apenas para ser apreciado como um simples passatempo. A experiência com Where Cards Fall é única e, apesar de alguns problemas de polimento, movimentação e seleção, vale muito a pena dar uma chance e se entremear na sua narrativa leve e tocante e, sobretudo, em seus puzzles interessantes.
Cópia de Switch cedida pelos produtores
Revisão: Jason Ming Hong