Horace, para Nintendo Switch

Review Horace (Switch) – A beleza e a dor de estar vivo

Horace é um daqueles jogos que podem ser apreciados em muitos níveis diferentes. Ele cumpre aquilo que a maior parte de nós espera de um bom jogo: distrai, diverte, premia a habilidade e traz satisfação instantânea. No entanto, também oferece algo mais: um sentimento de transformação e crescimento que só a arte proporciona. É como aquele filme que você viu muitos anos atrás, mas que de vez em quando reaparece na memória. É como um livro que faz varar a noite em claro, sem ver a hora passar. Ou ainda uma música que esquenta o coração e faz chorar, sem que se saiba exatamente o porquê.

Horace é uma aventura de exploração e plataforma muito carregada de histórias e personagens complexos, referências à cultura dos games e aspectos históricos e sociais do nosso mundo, seções de jogabilidade diversa e… poesia. Há uma naturalidade muito humana na maneira com a qual o robô Horace interage com o mundo, aprendendo progressivamente suas habilidades e refletindo sobre as idiossincrasias humanas e o significado de estar vivo. 

Parece evidente que se trata de um jogo adulto — não apenas em termos de classificação indicativa, mas pela profundidade e temáticas abordadas. Além disso, a constante referência a videogames antigos, elementos de cultura pop e história demandam alguma familiaridade com as décadas de 1980 e 1990. Nada que impeça a experiência dos mais novos, mas que certamente será mais aproveitado pela faixa etária a partir dos 30 anos de idade.

Desenvolvimento: Paul Helman
Distribuição: 505 Games
Jogadores: 1 (local)
Gênero: Arcade, Aventura, Plataforma
Classificação: 16 anos
Português: Não
Plataformas: Switch e PC
Duração: 14 horas (campanha)/21.5 horas (100%)

“Aquele que começa tem metade do feito alcançado: ousa saber!”

Horace sai pelo mundo.

Em Horace, o jogador acompanha as histórias de um grande elenco de personagens estruturado em torno de The Old Man, um velho magnata: sua esposa, filha, alguns funcionários e chegados. A eles se soma Horace, um robô amarelo cujo ponto de vista se torna a perspectiva do jogador. 

Todo o game é estruturado em capítulos organizados de acordo com a narrativa. O tempo em que permanecemos em cada capítulo, bem como as atividades desenvolvidas são sempre diferentes, priorizando a história em comparação com as dinâmicas de jogo. Há certas missões e objetivos em cada capítulo necessárias para o progresso, mas outras que podem ser realizadas ao longo de vários deles, dando em certos momentos o aspecto de exploração à experiência. 

Logo no início, Horace se mostra um personagem sensível e curioso, apenas ingênuo o bastante para que possamos nos identificar com sua surpresa infantil ao nos depararmos com seu mundo e sua própria existência. Como para se livrar de uma pergunta espinhosa, The Old Man improvisa um propósito banal para a vida de Horace: coletar um milhão de objetos.

A partir daí, o que é possível fazer com nosso robô vai ficando mais claro. Ao movimento básico se une a capacidade de coletar lixo e entulho espalhado pelos ambientes visitados; carregar e arremessar determinados objetos; subir em paredes e no teto, desafiando a gravidade; com um binóculo e observar o ambiente para planejar a travessia. Outras possibilidades são adicionadas em determinados pontos da história, sempre surpreendendo o jogador e levando a narrativa e nosso herói adiante.

A história de Horace aos poucos se torna uma tragédia complexa, cheia de meandros e incertezas, crises existenciais, metáforas, política e guerra. Com idas e vindas entre a casa em que aprendeu a ser vivo e outras cidades e tempos, a jogabilidade tradicional, de superar obstáculos e plataformas, passa a ser acompanhada por “chefões” inovadores, minigames rítmicos, recriações de arcades e jogos clássicos. De alguma forma, me vi jogando (como Horace) uma espécie de Guitar Hero por muito tempo até lembrar que o robô tinha outras coisas para fazer, além de registrar suas pontuações nos fliperamas de seu mundo.

“Beba minhas palavras com coração puro”

Horácio joga e diz: "Mas para mim, videogames realmente eram a mais alta forma de arte".

Nunca pensei que pudesse viver emoções tão intensas, rir e chorar com personagens de uns poucos pixels cada. Toda a arte de Horace é um tributo a videogames antigos, no estilo de Pixel Art. Mesmo as cutscenes utilizam essa técnica, com a mesma qualidade dos modelos independente de quanto eles estão próximos à câmera. Isso dá um ar cômico e estranhamente adorável a cenas duras e/ou emotivas em que o close é o quadro escolhido para contar a história. 

Esse mundo é repleto de referências a vários aspectos culturais de nossa sociedade: de filmes e jogos clássicos a séries de ficção científica, de Shakespeare ao movimento Punk, de Pong a Metallica. Crimes, racismo, conspirações, drogas e religião são alguns dos assuntos pelos quais se passa a história, não necessariamente para fazer sempre comentários elaborados sobre cada uma dessas coisas, mas para dar profundidade e matizes a um mundo tão complexo quanto o nosso.

A voz do personagem principal (definida no jogo como a de um “mordomo inglês”) é plana, robótica e com pouca nuance, o que amplia aquela impressão de um personagem ingênuo que se depara com uma existência a ser conhecida. Todos os demais personagens falam a partir da voz de Horace, em uma narrativa indireta. Esse estilo se torna particularmente interessante quando é possível ver as cenas se passando durante as animações, e Horace “dublando” os personagens que estariam falando em cada momento. Essa voz com poucas inflexões permite que o brilhante texto se destaque ainda mais. Como em tantos jogos, a ausência de uma tradução para o português é uma pena, porque priva muitos jogadores por aqui do entendimento da narrativa. Esse é um jogo que pode sim ser jogado sem que acompanhemos os momentos de história, mas ele certamente será visto com menos alma.

A estrutura sonora merece destaque, por incluir, além das canções originais, várias versões de músicas consideradas eruditas. Elas geralmente se combinam bem com a elegância de Horace (herdada do magnata, claro) e contrastam de forma poética com as tragédias e os mundos em ruínas que encontramos. São ainda músicas que possuem aquela capacidade muito particular de infligir emoções que não passam pela racionalização e podem ser recebidas de forma diferente por cada jogador. Para mim, nada era tão desolador quanto caminhar por lugares familiares ao som da Gminopedie n. 1 de Erik Satie, nem tão inquietante quanto Für Elise, de Beethoven, enquanto tentava várias vezes passar por uma seção particularmente difícil de plataforma.

“Até mesmo o bom Homero cochila”

Horácio foge de uma horada de macacos com lanças.

O jogo é um projeto pessoal de Paul Helman, desenvolvido ao longo de muitos anos, que aos poucos contou com o apoio de Sean Scapelhorn e da estrutura da 505 Games. Na versão para o Nintendo Switch, foram raros, mas existiram alguns bugs e glitches que não atrapalharam a experiência. Parecia haver um desequilíbrio no som, com momentos em que o volume mais alto estava em aspectos menos importantes do jogo. Senti falta de opções de ajuste fino que minimizasse esse problema. 

Também é preciso se levar em conta que se trata de um jogo difícil, em vários sentidos. A proporção entre narrativa e momentos de controle do personagem pode incomodar algumas pessoas mais interessadas em simplesmente jogar. Existe a opção de permitir que as cutscenes sejam puladas, mas o próprio jogo desencoraja essa prática, principalmente durante a primeira vez. Sob outro ponto de vista, é uma pena que as cutscenes que já ocorreram não sejam reproduzíveis a qualquer momento. Talvez esse tenha sido o jogo em que mais utilizei a função “gravar” do Nintendo Switch, empolgado para rever e reconhecer as referências de certas cenas.

A diversidade dos modos de jogo pode conferir uma camada extra de dificuldade e gerar pontos de frustração e desinteresse. Geralmente, nas partes de plataformas, o sistema ajuda o jogador com escudos extras caso muitas mortes ocorram em uma mesma parte, mas o mesmo não ocorre com alguns minigames e arcades obrigatórios para o progresso.

“É doce delirar, quando oportuno”

Horace não é um jogo perfeito e nem é para qualquer um, mas é daquelas experiências que marcam uma vida. Ficará sempre no meu catálogo como um exemplo para quem insiste que videogame não é arte e para que eu mesmo volte a vivenciar a poética doce e amarga de um pequeno robô amarelo.

Cópia de Nintendo Switch cedida pelos produtores

Revisão: Jason Ming Hong

Horace

9.5

nota final

9.5/10

Prós

  • Narrativas complexas com um elenco rico de personagens
  • Combinação perfeita entre estilo gráfico e trilha sonora
  • Variedade entre jogo principal e minigames
  • Homenagens e referências ao mundo real

Contras

  • Para algumas pessoas o excesso de história pode “atrasar” o jogo
  • Dificuldade elevada