Baldur's Gate 3 Coluna

Baldur’s Gate 3 e a liberdade como estrutura: breves considerações sobre a interatividade e impacto narrativo nos RPGs digitais

Baldur’s Gate 3, desenvolvido pela Larian Studios, desde seu anúncio em 2019 tem sido apontado como um possível marco na indústria dos games por sua abordagem inovadora à liberdade narrativa e interatividade.

Este artigo explora, em determinada profundidade, como essa liberdade foi implementada e seu impacto, apoiando-se em teorias fundamentais do campo dos estudos de jogos e narrativas digitais, utilizando especificamente os exemplos dos personagens Shadowheart, Daughter of Darkness, e Gale, The Wizard of Waterdeep.

Uma narrativa viva: a interatividade segundo Janet Murray

Shadowheart em seu caminho para se tornar Dark Justiciar
A Escolhida de Shar. Imagem: YouTube

Janet Murray, em sua obra “Hamlet no Holodeck” (2003), aborda o conceito de interatividade como uma característica central das mídias digitais, permitindo ao usuário tomar decisões significativas que influenciam diretamente o curso da narrativa. Baldur’s Gate 3 exemplifica essa teoria ao proporcionar decisões narrativas concretas através de personagens profundamente desenvolvidos, como Shadowheart, cuja jornada inclui escolhas críticas como tornar-se uma Dark Justiciar ou rebelar-se contra a sua divindade. Tais decisões, moldadas pelos jogadores, exemplificam como as mídias digitais oferecem um nível de interatividade que vai além das mídias tradicionais.

Outro exemplo dessa profunda interatividade é Gale, um mago cuja existência depende do consumo constante de energia mágica. Suas decisões são literalmente questões de vida ou morte, trazendo peso significativo às escolhas feitas pelo jogador. Essas interações são representativas do que Murray considera a essência da narrativa digital: escolhas com consequências palpáveis e duradouras.

Além disso, essa interatividade é enriquecida pelo conceito de “hipernarrativa” discutido por George Landow em “Hypertext 3.0” (2006). Segundo Landow, a estrutura não-linear permite múltiplas trajetórias narrativas, claramente refletidas nas jornadas distintas e ramificadas dos personagens Shadowheart e Gale. Combinadas, essas teorias mostram como a obra-prima da Larian Studios utiliza a interatividade para maximizar a experiência narrativa.

Regras que contam histórias: os sistemas interativos de Salen e Zimmerman

Gauntlet of Shar, o local das provações.
Gauntlet of Shar: uma dungeon de provações sombrias. Imagem: ArtStation

Integrando o conceito anterior de interatividade, Katie Salen e Eric Zimmerman destacam em “Rules of Play” (2003) a importância de sistemas de regras coesos para oferecer soluções narrativas variadas. Baldur’s Gate 3 aplica esta teoria utilizando o sistema da quinta edição de Dungeons & Dragons, destacando como regras bem definidas podem potencializar a liberdade narrativa, diferentemente do que o senso comum pode apontar como um limitador. Um exemplo claro é o Gauntlet of Shar, em que desafios como o “Self-Same Trial” são superados por meio de uma interação eficaz entre a mecânica de jogo e o enredo pessoal de Shadowheart.

De maneira similar, Gale demonstra essa mesma integração ao precisar absorver itens mágicos específicos para controlar sua condição, criando situações constantes de decisão estratégica. Essas mecânicas interativas fortalecem ainda mais a narrativa ao obrigar o jogador a considerar continuamente as consequências das escolhas feitas, refletindo claramente a teoria de Salen e Zimmerman.

Este modelo demonstra o impacto das regras no enriquecimento narrativo, uma vez que elas não apenas controlam as ações possíveis, mas também influenciam diretamente as decisões morais e estratégicas dos jogadores, fortalecendo a coesão entre história e jogabilidade.

Liberdade com propósito: as teorias de Jesper Juul

Gale e sua escolha sobre utilizar ou não a Coroa de Karsus para virar um deus
Gale of Waterdeep e sua escolha envolvendo a Coroa de Karsus. Imagem: X/Twitter

No que diz respeito à liberdade, teóricos como Jesper Juul, autor de “Half-Real” (2005), argumenta que jogos eficazes equilibram regras rígidas com espaços para expressão criativa. Este equilíbrio é visível em Baldur’s Gate 3 nas situações decisivas enfrentadas pelos personagens citados anteriormente. O dilema de Shadowheart envolvendo a Nightsong ilustra, de maneira clara, como o jogo restringe decisões com um conjunto específico de possibilidades, mas permite ao jogador uma significativa liberdade criativa dentro dessas fronteiras.

Gale também oferece exemplos deste equilíbrio, especialmente quando confrontado com decisões críticas relacionadas à Coroa de Karsus e ao seu possível sacrifício pessoal. A restrição de escolhas claramente definidas pelo sistema D&D torna essas decisões ainda mais impactantes, demonstrando como a liberdade estruturada reforça a conexão emocional e narrativa.

Para Juul, é precisamente essa combinação de restrições e liberdade que gera experiências de jogo emocionalmente envolventes e satisfatórias, permitindo que os jogadores sintam autoria genuína sobre suas ações e decisões narrativas.

Comunidades e escolhas: convergência midiática segundo Henry Jenkins

Interface oficial de mods do Baldur's Gate 3
Interface oficial de mods do Baldur’s Gate 3 (PC). Imagem: screenshot criada pelo autor

A despeito do que muitas críticas atuais da internet argumentam, Henry Jenkins, em Cultura da Convergência (2006), ressalta que a participação ativa dos consumidores é fundamental para a criação de comunidades engajadas. Assim, em consonância com esse conceito, Baldur’s Gate 3 exemplifica essa dinâmica, ao, por exemplo, implementar suporte oficial a mods, proporcionando aos jogadores ferramentas para modificar e expandir o jogo de acordo com suas preferências.

Com o lançamento do Patch 7, a Larian Studios introduziu um gerenciador de mods integrado ao jogo e um conjunto de ferramentas de modding, permitindo que os jogadores criem e compartilhem conteúdo personalizado, como novas armas, armaduras, classes e feitiços. Essa iniciativa não apenas facilita a personalização da experiência de jogo, mas também promove uma comunidade ativa de criadores e jogadores que colaboram e compartilham suas criações.

Além disso, o suporte a mods foi projetado para ser compatível com múltiplas plataformas, incluindo consoles, ampliando o alcance e a acessibilidade das modificações. Essa abordagem inclusiva reforça a ideia de Jenkins sobre a convergência midiática, na qual os consumidores não apenas consomem conteúdo, mas também participam ativamente de sua criação e disseminação.

Dessa forma, o jogo não só aplica a teoria de Jenkins, como também amplia sua pertinência, demonstrando como a participação ativa em narrativas interativas pode moldar comunidades fortes e engajadas, além de prolongar a relevância cultural e social do título.

Jogos como ferramenta reflexiva: a perspectiva de Ian Bogost

Os pais da Shadowheart aprisionados pela deusa Shar
Os pais da Shadowheart, aprisionados pela deusa Shar. Imagem: ScreenRant

Já sobre reflexão, Ian Bogost, em “Persuasive Games” (2007), afirma que jogos são plataformas ideais para explorar dilemas éticos e filosóficos complexos. Baldur’s Gate 3 exemplifica essa teoria através das profundas decisões éticas enfrentadas pelos jogadores. Momentos como a decisão da Shadowheart entre salvar seus pais ou libertar-se do domínio de Shar não apenas afeta o desfecho da personagem, mas também impõe ao jogador uma reflexão sobre lealdade, identidade e sacrifício pessoal.

Essas decisões são cuidadosamente projetadas para estimular o pensamento crítico dos jogadores, refletindo o potencial único dos jogos como meio persuasivo e reflexivo. A capacidade dos jogos de facilitar esses debates éticos de maneira imersiva destaca a força do meio como plataforma para discussões existenciais.

Nesse sentido, Baldur’s Gate 3 transcende seu papel como entretenimento e torna-se um exemplo claro do potencial dos jogos como ferramentas para a reflexão crítica e filosófica, conforme proposto por Bogost.

O legado interativo de Baldur’s Gate 3

O principal título da Larian Studios representa não apenas um avanço técnico e narrativo no design de jogos, mas uma consolidação de décadas de teoria crítica aplicada à prática. A forma como personagens como Shadowheart e Gale são moldados por escolhas interativas demonstra a capacidade única dos videogames de articular narrativa, sistema e ética em uma experiência coesa e significativa. Cada decisão do jogador é potencializada por uma arquitetura de regras cuidadosamente planejada, que transforma a liberdade em estrutura e a estrutura em liberdade.

Ao ser analisado à luz de teóricos como Janet Murray, George Landow, Salen e Zimmerman, Jesper Juul, Henry Jenkins e Ian Bogost, o jogo revela-se uma obra que compreende profundamente seu meio e o potencial que carrega. Ele não apenas permite que os jogadores influenciem o mundo ao seu redor, mas também os convida a refletir sobre si mesmos — suas crenças, limites e motivações. A interatividade, aqui, é mais do que uma mecânica: é uma lente para o autoconhecimento.

Por tudo isso, Baldur’s Gate 3 transcende a ideia de “jogo” como simples entretenimento. Ele se firma como um artefato cultural que desafia convenções, instiga o pensamento crítico e redefine o que esperamos de experiências narrativas digitais. O futuro dos RPGs passa por aqui.

Revisão: Julio Pinheiro