Clair Obscur: Expedition 33 cover

Clair Obscur: Expedition 33, um épico sobre luto

O gênero RPG, principalmente por turno, é o meu preferido. Mas começo aqui quebrando algumas expectativas, pois minhas referências não são clássicos como Chrono Trigger e Final Fantasy VII, da Square, e sim The Legend of Dragoon, da Sony, e Breath of Fire IV, da Capcom. Joguei tanto os dois que, na época, perdi a chance de conhecer os clássicos citados, mas isso me deu a oportunidade de viver as duas histórias mais épicas dos jogos para mim. Bom, até agora.

Uma história digna de Victor Hugo

Píer de Lumière com foco no monólito
O monólito ao fundo sempre lembrando o objetivo final

Em uma Paris com estética do século 19, a cidade de Lumière é o último refúgio em Clair Obscur: Expedition 33. Todo ano, a entidade chamada Paintress, traduzida como Artífice, pinta um número em um monólito gigante no horizonte, a vista de todos, que indica a idade máxima das pessoas. No momento em que ela troca o número, reduzindo-o em um, todas as pessoas acima daquela idade desaparecem, sendo transformadas em pétalas de chroma, que é a magia do jogo.

Assim que o evento ocorre e pessoas são apagadas, a Expedição 33, que corresponde a 67ª tentativa, parte para o continente em direção ao monólito, com o objetivo de derrotar a Artífice e interromper as mortes anuais e misteriosas. Gustave e Lune, expedicionários com somente mais um ano de vida, criaram um artefato que os torna capazes de absorver chroma, deixando-os constantemente mais fortes. Assim, existe uma esperança de sucesso depois de inúmeras tentativas fracassadas. 

A narrativa é contada de uma forma praticamente linear, com alguns flashbacks que sempre são impactantes. As expedições anteriores deixaram registros escritos em forma de chroma encontrados durante a exploração, que muitas vezes contém dicas de itens, ameaças ou contam um pouco de sua história.

Cemitério de espadas
Morte e luto são sempre referenciadas de alguma forma

Clair Obscur: Expedition 33 é sobre luto. Muitos outros dramas evocam sentimentos fortes como amor, vingança e ódio, mas o luto é diferente. Ele é penoso e angustiante, difícil de ser descrito e trabalhado para se tornar uma obra, pois carrega memórias pesadas e a certeza de que novas lembranças nunca mais serão feitas. Essa característica é constante nos personagens, pois eles lidaram com a morte de pessoas queridas a vida inteira. Luto é o clima do jogo, em uma melancolia quase palpável, sentida em toda sua estética.

A lástima da perda persegue os personagens. Quando desembarcam no continente, algumas pessoas morrem e, no decorrer dos atos, ocorrem mais perdas. Isso poderia gerar algum foco na vingança como um ponto de partida narrativo, mas Clair Obscur: Expedition 33 permanece leal a sua proposta. Por mais que a vingança seja um motivador poderoso, o título toma a decisão mais difícil e torna a dor do luto a origem da força de seus heróis.

Existe um ciclo de morte e luto, que é explicado detalhadamente no final da história. Esse ciclo amaldiçoado é o verdadeiro causador de toda a desesperança existente. No fim, o jogador escolhe se irá cessá-lo ou não.

Encontro com Esquie, uma criatura lendária que ajuda os expedicionários
Encontro com Esquie, uma criatura lendária que ajuda os expedicionários

A obra traz reviravoltas em sua narrativa com perfeição. Alguns pequenos mistérios sinalizam que algo está por vir mas, quando ocorre, não existe coração que esteja preparado, principalmente para os acontecimentos do final do segundo ato.

RPGs costumam entregar histórias brilhantes. Clair Obscur: Expedition 33 não é diferente. Aliás, é diferente sim, pois ele eleva a excelência que estamos acostumados. Durante as primeiras horas, o combate é um dos principais motivadores para avançar, mas, posteriormente, a narrativa passa a carregar sozinha todas as próximas dezenas de horas.

Particularmente, tive o mesmo sentimento de quando joguei e entendi a história de Breath of Fire IV na adolescência. Na época, não tinha o privilégio e nem o conhecimento necessário para interpretar e decifrar o sentimento em palavras como faço aqui. Escrever esse texto, portanto, é como revisitar a emoção de encerrar a história épica do RPG da Capcom, mas, dessa vez, consigo estender a sensação e imortalizá-la.

Fiódor Dostoiévski e a personalidade em camadas

Maelle fazendo pose de esgrima antes de iniciar um combate
Maelle é especialista em esgrima

Clair Obscur: Expedition 33 apresenta personagens únicos, complexos e diferentes à sua própria maneira de uma forma tão vasta que merece um tópico somente para isso. Vai além do padrão de herói e vilão, bem e mal, mas também difere de personalidades cinzas ou algo como um anti-herói. Eles possuem alma.

O livro “O Idiota”, de Dostoiévski, um romance com trama novelesca que ocorre na Rússia no século 19, é minha maior referência na criação e personificação de personagens fictícios. Através de diálogos extremamente longos, com inúmeras tramas dentro de outras tramas, o filósofo nos apresenta pessoas complexas, com personalidades em camadas, principalmente o protagonista, o Príncipe Míchkin, em que é possível perceber suas almas sendo descritas. Eu vi algo parecido aqui.

O arco de Gustave é relativamente curto, mas longo o suficiente para destrinchar todas as camadas de sua personalidade, chegando a sua alma. O mesmo ocorre com os outros personagens, explorando-os de forma diferente. Expor mais que isso, principalmente de seus companheiros, seria considerado spoiler e não quero estragar a experiência tão magnífica que é viver ao lado deles.

É importante dedicar um parágrafo aos gestrais, personagens que são criaturinhas místicas com cabeça de pincel. Eles são responsáveis por momentos de pura galhofa, que excedem o absurdo em um mundo com tom tão sério, e isso é algo comum em muitos RPGs clássicos, servindo como um respiro para a história e fazem os heróis e o jogador darem boas risadas.

Golpeados por Zinédine Zidane

Tela de escolhas do combate
Os combates são sempre difíceis, principalmente no começo

Confesso que é um pouco doloroso tratar sobre a jogabilidade do título. Toda obra-prima possui um defeito e, às vezes, é algo tão pequeno que não consegue se destacar devido a grandiosidade do conjunto. Aqui, é perceptível e doloroso, mas felizmente se torna irrelevante.

Eu diria que a palavra perfeita para defini-lo é justamente isso, a dor, e isso se dá por conta do sistema extremamente punitivo de combate, tão punitivo que chega a um ponto de angústia profunda e dor física.

Basta um errinho, um botão apertado com um milissegundo de diferença, que a criatura mais simples e fraca, com uma mera cabeçada, fará a expedição falhar por completo na dificuldade normal. E é fácil errar.

Tela de QTE durante o combate
Se apertar o botão no momento certo, os golpes ficam mais fortes

Aparentemente, as criaturas do começo do jogo estão desbalanceadas para uma experiência de iniciante, mesmo colocando a dificuldade no fácil. Errar uma esquiva ou um contra-ataque é punido, na maioria das vezes, com a derrota do time inteiro nos primeiros mapas. Um pouco mais à frente, conforme a exploração avança e itens e equipamentos melhores são adquiridos, o grupo felizmente consegue sobreviver por mais tempo e o problema é, de certa forma, resolvido.

Seguindo a personalidade única de cada personagem, sua complexidade também está no conjunto de habilidades. Cada um deles possui uma mecânica própria que escala conforme sua evolução. Descobrir e destrinchar as inúmeras possibilidades de construções possíveis é algo muito gratificante para mim, tanto que, no decorrer do jogo, realizar novas tentativas diferentes transformaram a sensação de punição das derrotas em um acúmulo de experiência.

Deixando Frédéric Chopin orgulhoso

Os heróis se preparando para um combate
Cada chefe possui sua própria música

O elemento mais importante para elevar a imersão em um jogo é a trilha sonora. Quando bem utilizada, o jogador é capaz de sentir o que os personagens estão sentindo, pois a música é o melhor vetor das emoções.

Orquestrada com perfeição, a trilha sonora possui um foco maior em tons menores, fato que a torna mais triste. E vai além disso, muitas músicas são acompanhadas por uma mezzo-soprano que quase carrega o jogador no colo com a suavidade de sua voz.

Os momentos tristes, alegres, que carregam luto, melancolia, até os mais felizes e animados, cômicos e desafiadores, possuem sua própria estética musical que encaixa de uma forma excelente. A trilha sonora é tão boa que até mesmo fora do jogo consegue transmitir essas emoções.

Pierre-Auguste Renoir, a inspiração estética

O chão de Lumière iluminado através das folhas
O chão de Lumière iluminado através das folhas

O segundo elemento mais importante para a construção da ambientação é o visual. Nesse quesito, Clair Obscur: Expedition 33 também é um espetáculo. Os ângulos da câmera são cinematográficos, utilizando conceitos avançados de fotografia. Luzes e sombras compõem uma dança ao som das cores, mostrando seu principal conceito visual: o charme.

Os cenários são muito variados, cada um com seu estilo próprio que harmoniza com a trilha sonora tornando-o mais charmoso ainda. Uma das principais recompensas ao jogador pela exploração é o vislumbre de áreas belíssimas em campos abertos, que brilham mais ainda devido a excelente utilização de cores e iluminação.

Os heróis se preparando para outro combate
Muitas cenas são feitas em ângulos cinematográficos

A estética dos personagens humanos e cenários me lembrou muito as obras do artista francês Renoir, principalmente por suas técnicas de luzes e sombras em ambientes movimentados.

Por fim, é importante ressaltar que o monólito onde está pintado o número 33, indicando os próximos a morrerem, é visível no horizonte em quase todos os mapas, deixando claro o objetivo da expedição. Mesmo nos momentos mais alegres e simples, a lembrança malogra do luto que está por vir prevalece na visão e na memória dos expedicionários, como uma bomba relógio prestes a findar a felicidade.

É horrível assistir à agonia de uma esperança

O jogo é sobre luto, sobre a esperança desesperançosa de quem opta por reviver incessantemente suas memórias com a pessoa que morreu. Eu queria ser clichê e falar que, no fim, o luto se torna aceitação rumo ao “felizes para sempre”, mas não é isso. É puramente sobre dor e perda. A esperança fica em mim, pois, segundo minha terapeuta, lidar com tristeza e sofrimento em obras assim me ajudará a aceitar esses sentimentos quando for o meu momento de entregar uma pessoa.

Após lágrimas e soluços (aliás, esse foi o primeiro jogo que eu realmente chorei), Clair Obscur: Expedition 33 se tornou um dos jogos mais memoráveis para a minha vida, e tenho certeza que também o será para todos que jogarem.

Revisão: Júlio Pinheiro