Por Wendel Barbosa e Luciana Silveira
De uns anos pra cá, vira e mexe, a grande mídia especializada em games tem alertado sobre a odiosa prática do crunch no desenvolvimento dos nossos amados joguinhos. Um dos símbolos da luta contra essa prática, e que ajudou a tornar público tal ato, foi o jornalista norte-americano Jason Schreier que denuncia o crunch no livro Sangue, Suor e Pixel. Empresas como RockStar Games, Epic Games, NetherRealm Studios, Bioware, CD Project Red e Naughty Dog, possuem denúncias públicas da prática no desenvolvimento dos seus jogos.
O que é o crunch?
Em meados do ano passado, uma nova denúncia ganhou os palcos das mídias sociais. Mais uma vez envolvendo a CD Project Red, mas agora com o desenvolvimento de Cyberpunk 2077. Mas, o que se trata isso? A palavra crunch, em inglês, significa “triturar”. Mais especificamente, no ambiente ligado ao desenvolvimento dos jogos, a palavra passou a se referir às horas extras e intensas de trabalho, em que a equipe é obrigada a cumprir muitas vezes uma jornada que pode chegar às 100 horas semanais.
Sendo algo associado mais comumente à indústria de games, a prática é resultado de pressões que surgem após um longo período de produção sem o estúdio apresentar uma data específica para o seu lançamento. Cyberpunk 2077, por exemplo, foi anunciado antes da chegada dos consoles da oitava geração, em 2012. E desde o anúncio da suposta data de lançamento, em 2020, o mesmo foi adiado inúmeras vezes. Há, nesse sentido, uma forte pressão por parte de investidores e acionistas que querem o resultado esperado o quanto antes. Para “resultado”, leia-se “dinheiro”. E essa missão é passada de forma irresponsável para a equipe envolvida no desenvolvimento do game.
“Trabalha quem quer”
Um dos argumentos a favor do crunch é o caráter voluntário da prática: se o desenvolvedor quiser ir para sua casa no horário, ele não pode? Ele é obrigado a fazer hora extra? Ele não pode arrumar outro emprego? Fica quem quer! Nós nos acostumamos a pensar em termos contratualistas em que “o combinado não sai caro”. Esse pressuposto ignora a disparidade de forças entre aquele que contrata e quem é contratado; tampouco leva em conta a dinâmica social entre os membros de uma mesma equipe.
Qualquer pessoa que já tenha trabalhado em projetos conhece o significado do crunch – o trabalho extra, mal remunerado, mas necessário para que metas sejam atingidas no prazo estipulado. Quem quer que já tenha passado por isso sabe que quando um coordenador agenda uma reunião para o sábado à tarde, ninguém contesta. É como se reuniões aos sábados fossem um dado da natureza. Quem poderia questionar quando a coordenação pede a entrega de um produto para, no máximo, domingo à noite? Ou ignorar o Slack em qualquer noite da semana útil? A aceitação do grupo deslegitima a reação individual, solitária. Parafraseando Tom Jobim: de repente, não mais que de repente, você aprende que trabalhar aos sábados é sua nova rotina. Seus colegas fazem isso, por que você não faria? Você é melhor do que eles?
A questão moral
Não é impossível que uma parte da equipe de desenvolvedores de jogos goste de trabalhar desenvolvendo seus games por horas a fio. No mesmo Sangue, Suor e Pixels, Schreier relata que os desenvolvedores se alimentam da reação dos fãs às demos e aos trailers dos jogos. Mas há uma questão moral ainda não respondida: uma vida de crunch é uma vida que vale a pena ser vivida? Em que ponto deixa de ser crunch e passa a ser um vício em trabalho?
Independente dessas questões morais, há um grupo que se beneficia enormemente do crunch. Não somos nós, consumidores de games – afinal, nós continuamos recebendo jogos incompletos que precisam de patches e atualizações, meses após o lançamento. Não são também os desenvolvedores; nós vimos que os bônus desses trabalhadores estava atrelado à nota das reviews do Metacritic, prática que não é incomum na indústria (e em parte explica porque tantos veículos de comunicação deram nota máxima ao Cyberpunk 2077). Quem se beneficia são aqueles que se apropriaram desse sobretrabalho, seja essa recompensa na forma de bônus financeiro por vendas de jogos ou remuneração de capital acionário.
O sobretrabalho
Apesar da justa comoção diante de ato tão desumano, gostaríamos de atentar para o fato de que esta prática não é nenhuma novidade e pode ser observada em qualquer setor do mercado de trabalho. No geral, em sociedades onde existem pessoas que possuem o monopólio dos meios de produção, há uma imposição, por parte dos mesmos, aos seus funcionários – em comum acordo ou não – para uma jornada de trabalho diária que excede a necessária. O foco, na verdade, está em ampliar as margens de lucro (mais-valia) se utilizando de uma mão-de-obra que já está à sua disposição.
Sabemos que, conceitualmente, crunch e sobretrabalho são coisas distintas. Mas, em essência, podemos perceber certa proximidade. O sobretrabalho ganhou relevo nos primórdios da Revolução Industrial e encontrou sua legitimação cultural entre os religiosos puritanos. Para eles, o trabalho deveria ser desempenhado com afinco. E uma vida dedicada ao labor era uma vida dedicada a Deus. O crunch, por sua vez, não tem nada de religioso, mas guarda relação com os desdobramentos de outra revolução – a da Economia do Conhecimento, a cada dia mais exigente de qualificação técnica-profissional. As novas tecnologias que facilitam a comunicação em tempo real garantem que o colaborador – o outro apelido de trabalhador – esteja sempre disponível, acessível. Quem não se enquadra, não consegue ser promovido ou não consegue jobs. Assim, em ambos os casos, estamos falando de jornadas intensas de trabalho que extrapolam a noção de algo saudável para a vida dos envolvidos. Há, em linhas gerais, uma pressão psicológica para a normalização e aceitação dessa prática de forma contratual entre as partes, apesar de moralmente ser algo extremamente duvidoso.
No desenvolvimento dos jogos, o crunch se tornou algo atrelado à própria agenda. Como se fizesse parte do cronograma dos profissionais responsáveis pela produção do game. Porém, todas essas horas extras não necessariamente resultam em algo bem polido. E isso, infelizmente, amplia ainda mais a prática, na medida em que mesmo após o lançamento dos jogos o trabalho de correção de bugs continua.
Crunch como braço filosófico do sobretrabalho
O que queremos dizer é que o crunch representa um braço – por assim dizer – do conceito filosófico de sobretrabalho. Algo que, apesar de imoral, foi socialmente aceito por estar atrelado ao próprio sistema capitalista. A dissociação do termo permitiu a crítica ao crunch sem que haja a necessidade de condenar o sistema em si ou o sobretrabalho. Mas, tanto o crunch quanto o sobretrabalho são crias do sistema. Atualmente, ele se transformou num debate de bolha, apequenando um problema muito maior. De toda forma, essa dissociação é que explica o motivo de vermos uma justa comoção contra os abusos sofridos pelos desenvolvedores de jogos. E a apatia e os olhos fechados quanto a vida do “seu João”, que trabalha num mercado, longe de sua casa, da hora que acorda até, praticamente, a hora que vai dormir, todos os dias da semana. É como se os olhos não apenas estivessem voltados para o sofrimento do trabalho qualificado, mas também naturalizassem como “parte da vida” as vicissitudes do trabalho não-especializado.
Revisão: Jason Ming Hong