A franquia Xenoblade Chronicles, por estar restrita a um certo tipo de público, parece fugir levemente da massificação da indústria cultural que empobrece mensagens e discursos de obras artísticas. Dessa forma, podemos fazer paralelos políticos interessantes com nossa sociedade. Tendo como fio condutor temáticas como guerras, desenvolvimento tecnológico, religião, ciência e afins, tais narrativas abraçam a ideia de poder, corrupção e defendem a premissa de que o amor e a amizade podem ser os principais remédios para a superação de todos os problemas.
Apesar da mensagem inicial parecer simplista e pouco inspirada, a interpretação do jogador – como em toda obra artística – pode extrapolar as barreiras discursivas do clichê permitindo que a gente se aprofunde em alguns dos seus conceitos. Salvo tudo isso, a forma como a história vai se desenrolando prende a atenção do jogador com algumas mudanças inesperadas no roteiro. Ou seja, por mais que a solução possa parecer simplista, é a jornada e as reflexões de personagens e NPCs que tornam a experiência com o jogo tão marcante.
Poder e consequência
Parafraseando o filósofo francês Michel Foucault, o poder não pode se dar somente através da violência ou da ideologia (pensado aqui como um conjunto de ideias que dissimulam a realidade), mas também por uma ordem física chamada por ele de microfísica do poder. Dentro da sociedade, ele ocupa um espaço visível, seja nas leis, nos líderes e instituições diversas. Tomando como ponto de partida os acontecimentos do jogo mais recente da Monolith Soft, lançado no último dia 29 de julho, podemos perceber isso com bastante clareza.
Em Xenoblade Chronicles 3, a premissa simples de uma guerra envolvendo duas grandes nações (Keves e Agnus), no mundo de Aionios, nos é apresentada logo nos primeiros minutos de jogo. Nas sociedades modernas, tais conflitos seguem a lógica de exploração capitalista: o desejo por recursos e a dominação ideológica e econômica. No jogo, no entanto, esse embate ganha uma camada mais simbólica, pois o que se deseja é a essência (Ether) dos soldados mortos em campo de batalha. Essa mesma essência é a principal fonte de energia daquele mundo. Nesse sentido, vida (a força combativa) e morte (o “espírito” dos derrotados) são úteis. Mas, úteis a quem?
Ideologia da liberdade
Para não correr o risco de dar algum tipo de spoiler, basta saber que os cidadãos/soldados das nações envolvidas no conflito atuam em prol dos interesses de poderosos, que aqui estão mesclados com os próprios governos e seus representantes (os cônsules). Eles acreditam lutar por uma causa que não os pertence. Mas, esses mesmos poderosos forjaram toda uma cadeia discursiva que torna o interesse particular em um interesse público. O discurso, nesse sentido, atua como mecanismo ideológico, pois é alienador. E é isso que faz com que o soldado mate e morra por seus conterrâneos sem questionamentos. A devoção ao governo é tão grande que até holocausto a ele são realizados e transformados em um valor moral dentro daquela sociedade.
O holocausto ganha forma com o encurtamento do ciclo de vida das pessoas, que são ditados pela rainha e o ritual do Flame Clock (máquina que retém o Ether). A vida é breve e eles não conhecem a velhice (uma metáfora para a experiência). Todos possuem um papel a cumprir dentro da colônia e essas engrenagens são trocadas constantemente. Mas, não se critica esse papel, ele apenas deve ser cumprido. É um perfeito mecanismo de controle social e político alicerçado pela guerra e a promessa que – mesmo na morte – você fará parte de algo maior. A noção de liberdade é deturpada em prol do controle que as elites exercem sobre os moradores das colônias. A vida que eles levam ao ser normatizada é, portanto, inquestionável. Alguns acontecimentos, no entanto, fazem com que jovens de nações inimigas despertem desse controle e somem força em prol da libertação de todos.
Despertando do controle
No mundo real, as dinâmicas das relações humanas deram um novo sentido ao processo de transformação dos recursos naturais (o trabalho), na medida em que passamos a vender nossa força produtiva, às custas de um salário, para sobreviver. Ou seja, nossos corpos são a força motriz da sociedade liberal, tal qual os personagens do mundo fictício de XC 3. Assim como no jogo, são criadas cadeias discursivas que mascaram as contradições desse sistema, que mesmo aprisionando os corpos dos trabalhadores – que atuam para o enriquecimento dos poderosos (mais-valia) – vendem a imagem de libertação através do trabalho. Dessa forma, todos estariam contribuindo não para o progresso individual de uma minoria rica, mas para o avançar da sociedade como um todo. Pura retórica!
Em XC3, a semente da dúvida brota, inicialmente, em Noah, um “off-seer” (aquele que coleta o Ether), protagonista da aventura. Após mais uma vitória no campo de batalha com sua equipe, ele observa, com certa desconfiança, o rito de passagem sempre orquestrado por um instrumento de sopro que conduz a força vital do sacrificado até o Flame Clock. Seria esse o sentido da vida? Partindo em mais uma missão, Noah e sua equipe se deparam com um grupo rival e com uma fonte de energia desconhecida.
O despertar para a realidade é incutido por uma figura misteriosa que fugiu da fatalidade ritualística daquele mundo. Um desajustado social, por assim dizer. E, a partir daí, certo nível de consciência surge, à medida que seu antigo líder dá as caras e demonstra, com toda pompa, sua veia fascista. Encurralados, os jovens de nações inimigas deixam a rivalidade para trás e lutam lado a lado contra aquele mal.
Antes de qualquer coisa, presenciamos aqui, junto ao processo de conscientização, uma quebra de hierarquia: um soldado se sublevando contra uma linha de comando. Assim, o despertar de Noah ganha camadas mais profundas por conta de sua formação militar. A contestação daquela realidade é tão intensa que une até mesmo uma equipa inimiga. O grupo, a partir daí, parte em uma nova missão: destruir o Flame Clock de cada colônia e libertar seus cidadãos. É a conscientização através da ação. A beleza de tudo é que o título não apresenta uma solução milagrosa e simplista, tal qual uma fábula. Pois, mesmo destruindo a máquina e eliminando o controle ideológico que ele exerce sobre as pessoas, ainda existem aqueles que não aceitam isso, na medida em que perderam o sentido de suas próprias vidas.
A luta é diária
Não existe aqui o “e viveram felizes para sempre”. Noah, Mio, Eunie, Sena e todos os personagens presentes, não são meros estereótipos do que a indústria entende como “heróis”. São jovens descobrindo o real sentido de viver e que estão buscando seu lugar no mundo, experimentando um conceito de “vida” diferente do que os foi apresentado. Eles lutam não só por sua libertação, mas também por seus amigos e inimigos. Nesse sentido, a história de XC 3 vai muito além da maniqueísta luta do bem contra o mal, assim como é na vida real. Retomando Foucault, o filósofo dizia que a “liberação abre um campo para novas relações de poder, que devem ser controladas por práticas de liberdade”. Devemos ter em mente, portanto, que para sermos de fato livres, devemos nos libertar dos estados de dominação que existem e nos oprimem. E essa luta, a revolução a ser feita, é diária.