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Fetichismo nintendista

Vez ou outra me pego pensando no apego emocional que a gente insiste em ter com certos produtos e empresas. Isso é um fenômeno social que surgiu e cresceu no mundo capitalista, através da transformação das dinâmicas relacionadas às nossas práticas de consumo. Dessa forma, o produto em questão se transforma em uma coisa real, autônoma e com um valor objetivo nas nossas vidas, como um amigo próximo ou um familiar.

Fidelizando o consumidor

Fidelizando o consumidor

Há um filósofo chamado Louis Althusser que diz que não há produção possível sem que seja assegurada a reprodução das condições materiais de produção. Para que isso seja possível, a propaganda e a ideologia exercem um forte papel. A publicidade vende a utilidade de certo produto para a sociedade, em geral; a ideologia centraliza uma vontade que almeja a coletividade, escondendo os interesses particulares daqueles que detém os meios de produção: o lucro.

Ambas, portanto, fidelizam o consumidor, ganhando sua mente e seu coração. Na indústria de jogos eletrônicos essa prática é muito comum e vem sendo construída já há muito tempo. As campanhas agressivas de publicidade da SEGA e Nintendo, nos anos 80 e 90, por exemplo, angariaram mais do que potenciais compradores. Trata-se de uma legião de fãs que sempre estão prontos para defender sua empresa do coração. Em mercados emergentes, como o brasileiro – onde o poder de compra é muito inferior ao mercado norte-americano, europeu e asiático – essa defesa é ainda mais forte.

Comunidades imaginadas

Comunidades imaginadas

Acredito ser seguro dizer que as empresas de jogos eletrônicos conseguiram criar junto à sociedade uma espécie de subcultura, com signos próprios e uma clara identificação entre os jogadores das mais diversas plataformas (PC, PlayStation, Xbox e Nintendo). Cada uma dessas “comunidades imaginadas” é responsável por massificar essa cadeia de signos, unidos pelo produto que os jogadores consomem (videogame) mas, ainda sim, nos permite identificar as diferenças entre os usuários de cada plataforma. A defesa – muitas vezes agressiva – a marca, no entanto, é igual, à revelia da plataforma.

Essa ligação é capitalizada por uma série de práticas de incentivo ao consumo que foram ganhando força nos últimos anos: acessibilidade, precificação, potência de hardware, títulos exclusivos, inovações, suporte, serviços online etc. A Nintendo, no entanto, em comparação às demais, tem uma prática mais conservadora, arraigada ao passado que ela construiu. A empresa acaba não se enquadrando muito nesse formato que a indústria de jogos eletrônicos assumiu. E mantém uma política que, apesar de pautada na experiência, não parece se preocupar de forma contundente com o feedback dos consumidores.

A Nintendo ao longo dos anos ditou várias inovações que se transformaram em tendência de mercado. Isso sem mencionar a quantidade absurda de títulos de qualidade e personagens icônicos e carismáticos que furaram a bolha dos jogos eletrônicos e que dão às caras em outros formatos de mídia (filmes, animes, quadrinhos, card games) dentro da indústria cultural. Se valendo do sucesso construído e – em certa medida – da nostalgia, a empresa faz o mínimo no que se refere a sua política com os consumidores. No mercado brasileiro, se partirmos do pressuposto estabelecido nas primeiras linhas deste artigo, no que se refere ao apego emocional, é seguro dizer que há uma relação que beira ao abuso.

Política anti-consumidor

 Após ficar anos fora do mercado brasileiro, a Nintendo voltou de forma oficial ao nosso país, em 2020. Três anos depois, ao que parece, uma das maiores conquistas para os fãs da marca foi a criação de um perfil brasileiro da Nintendo no Twitter. As mídias físicas, prometidas na BGS do ano passado para o nosso mercado estão dando às caras a conta-gotas. E todos os lançamentos recentes ficaram de fora. Isso sem mencionar a ausência da localização dos títulos para o nosso idioma. Apesar de uma ou outra exceção, jogos de peso como Xenoblade Chronicles 3, Metroid Prime Remastered, Fire Emblem Engage, Bayonetta 3 e o vindouro The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom ficaram de fora.

Por falar em Zelda, o novo jogo sofreu um aumento de preço (U$ 70) e a justificativa do presidente da Nintendo of America beira ao ridículo: “O preço reflete o tipo de experiência que os fãs podem esperar ao jogar este título em particular”. Esse é outro ponto sensível, na medida em que a “Gigante Japonesa” tem uma política de precificação bastante complicada. Jogos em geral são caros. Isso é um fato! Um lançamento de Xbox Series X/S, PlayStation 5 e Nintendo Switch variam de U$ 60 a U$ 70, fazendo com que tais jogos cheguem em nosso país beirando aos insanos R$ 400 (cerca de 1/3 do salário mínimo).

Política anti-consumidor

A diferença é que Sony e Microsoft costumam fazer cortes de preço após alguns meses do lançamento dos jogos. Assim, enquanto no último mês um dono de PlayStation 4 pôde adquirir The Last of Us Part 2, de 2020, a um valor menor a R$ 50, um dono de Nintendo Switch continua tendo que pagar R$ 300 em The Legend of Zelda: Breath of the Wild, de 2017. Para não ser injusto, a eShop até conta com promoções. Mas, são raras, em datas especiais (como o Mario Day), poucos produtos selecionados e quase nunca passam de 33%. Essa prática acaba fazendo com que o próprio mercado de usados – que aqui no Brasil poderia ser uma solução para o problema dos preços altos – não seja tão viável e incentive que uma galera – absorvida pelo FOMO – pratique a pirataria.

O serviço online da Nintendo também deixa a desejar e parece ter retrocedido no Switch. Em pleno 2023 não há a possibilidade dos jogadores conversarem através de um chat de voz integrado ao sistema do aparelho, por exemplo. Foi nessa geração também que a empresa resolveu entrar na onda iniciada pela Microsoft – com o Xbox Live – e cobrar para que os jogadores pudessem jogar online. A vasta biblioteca do Virtual Console, surgida no Wii, deu lugar a um serviço contido, burocrático, com atualizações sazonais e que exige uma mensalidade maior daqueles que optarem por uma experiência “mais completa”.  E isso sem mencionar o valor absurdo cobrado em DLCs (quase todos pensados antes do lançamento dos títulos mais recentes), que custam cerca da metade do preço do jogo completo. Uma das práticas absorvida de outras empresas.

Por fim, acho relevante falar um pouco do hardware do Nintendo Switch que, em comparação à concorrência, apresenta um console mais limitado e defasado. Muitas críticas foram disparadas a alguns títulos recentes – como Nintendo Switch Sports, Mario Strikers: Battle League, Bayonetta 3 e, principalmente, Pokémon Scarlet & Violet – por conta de problemas técnicos, baixa resolução,  framerate e pouco conteúdo. Mas, ai daqueles que sugiram – mesmo após seis anos de mercado – que o hardware carece de uma revisão e que um novo aparelho seria muito bem-vindo. É um raciocínio que enxerga o lado da empresa e seus acionistas, que estão ganhando rios de dinheiro com o sucesso comercial do aparelho, mas que ignora que o console vem recebendo títulos tecnicamente aquém do que o consumidor merece, prejudicando a quem de fato interessa.

Confundindo as relações

A relação do fã com a marca é tão forte e intensa que as práticas anti-consumidor são abonadas. As críticas – como os apontamentos aqui apresentados – são rechaçados com violência ou ironia, pois ganham um caráter pessoal. É como se as falas fossem direcionadas diretamente ao consumidor e não aos produtos por eles consumidos. Dentro desse fetichismo nintendista, a empresa e seus produtos parecem ter uma espécie de moral que deve ser defendida. Posição em que o fã se coloca e o faz esquecer que antes de qualquer coisa ele é um consumidor. Diante dessa amnésia, fomentada pela ideologia, ele alimenta a relação de abuso, confundindo a mesma com amor.

Revisão: Ailton Bueno