De alguns anos para cá, percebi que os RPGs de mesa têm se popularizado bastante. Obras em que eles aparecem ficaram famosas e furaram a bolha, várias pessoas já falaram para mim que conheceram os RPGs, especificamente Dungeons and Dragons, com a série Stranger Things. Dentro da cultura pop, séries como The Legend of Vox Machina e o canal D20 Culture do YouTube divulgam as complicadas mecânicas de D&D. Obviamente, não posso deixar de citar Jovem Nerd e seus podcasts que narram aventuras com proporções megalomaníacas dentro do universo criado pela Wizards of the Coast.
Apesar do sucesso mundial, Dungeons and Dragons foi pouco explorado no universo gamer, sendo a franquia Baldur’s Gate seu principal expoente. Aqui vou tratar, de uma forma bem intimista, do ganhador do prêmio Game of the Year pelo The Game Awards de 2023 e o jogo mais bem premiado do mundo: Baldur’s Gate 3.
Desenvolvimento: Larian Studios
Distribuição: Larian Studios
Jogadores: 1-2 (local) e 1-4 (online)
Gênero: Aventura, RPG, Estratégia
Classificação: 16 anos
Português: Legendas e interface
Plataforma: Xbox Series X|S, PS5, PC
Duração: 67 horas (campanha)/160 horas (100%)
Na Costa da Espada
Forgotten Realms é o nome do universo de Dungeons and Dragons, que é gigantesco. Além do planeta, assim como o nosso, existem planos elementais que transcendem as barreiras físicas, planos infernais e celestiais, astrais e muitos outros. Eles são abordados nas inúmeras histórias que existem, como os clássicos Tirania dos Dragões e A Maldição de Strahd, além das aventuras que um mestre experiente pode criar utilizando estes complexos domínios.
A história da franquia Baldur’s Gate ocorre no continente de Faerûn – equivalente à nossa Europa -, mais especificamente nas redondezas da cidade que leva seu nome: Portão de Baldur. A terceira sequência segue a história de seus antecessores, mas de uma forma tão sutil que até parece algo distante, não sendo necessário jogar os títulos anteriores para entender o que está acontecendo. Apesar disso, pessoas, conversas, livros e documentos referenciam os acontecimentos, principalmente nos mapas finais.
O primeiro, o segundo e todos os anteriores seguem a história das proles de Bhaal, o deus do assassinato, e suas quedas, ascenções, com entrega ou resistência ao desejo assassino advindo do sangue maligno. Baldur’s Gate 3, entretanto, continua essa narrativa de uma forma paralela mas totalmente interligada, e somente após a conclusão de algumas missões finais que tudo faz sentido.
A obra se inicia em um Nautilóide, um tipo de navio voador que navega entre os planos. Lá dentro, as pessoas têm seu cérebro infectado com uma larva de Devoradores de Mentes, os Ilítides, com o intuito de serem controladas e posteriormente transformadas. Após um ataque de um grupo de Githyankis, uma espécie de humanoides esverdeados, combatentes exímios e inimigos mortais dos Ilítides, o Nautilóide naufraga nos ares e cai no caminho de Elturel e Baldur’s Gate.
Com o objetivo inicial de se livrar da larva, os personagens se encontram em uma conspiração que envolve uma nova deusa chamada Absoluta e seus fiéis, que têm o objetivo de conseguir novos membros e controlar o continente inteiro. Durante a aventura, o jogador pode fazer a escolha de seus caminhos e métodos, mas o objetivo final sempre será ir para Baldur’s Gate e se livrar da Absoluta, mesmo que precise fazer parte dela para dominá-la.
O título possui três atos bem distintos, cada um com seus problemas próprios e soluções únicas, mas sempre seguindo uma certa linearidade. O primeiro possui decisões morais interessantíssimas que impactam principalmente no próximo ato, enquanto apresenta o culto e uma disputa entre Goblins, Druidas e Tieflings, e outra com Anões Duergar, Fungos e Gnomos. O jogador deve fazer algumas escolhas difíceis, ao mesmo tempo que vai conhecendo a história e definindo sua bússola moral.
O segundo ato é mais sombrio e o mais curto, culminando até a entrada da cidade de Baldur’s Gate. É nesse momento em que se inicia a terceira e maior parte do jogo, onde é possível passar mais horas do que os anteriores juntos, com uma quantidade imensa de missões secundárias que, felizmente, não desviam do foco.
Como uma aventura no tabuleiro
Existem 11 raças com 31 sub-raças e 12 classes com 46 subclasses, que seguem as regras do Livro do Jogador da 5ª. Edição de Dungeons and Dragons e outros complementos. Além disso, é possível misturar as classes à vontade e editar suas construções a qualquer momento conversando com o misterioso e curioso NPC chamado Funestus, o que facilita muito a aventura, viabilizando a correção de alguns erros e tornando a jogatina mais equilibrada.
Você inicia podendo criar e configurar um herói próprio, escolher entre 6 personagens prontos (e que são um pouco menos editáveis) ou o Impulso Sombrio, uma origem misteriosa que segue a história canônica. Caso o jogador crie ou escolha o Impulso Sombrio, os outros personagens prontos podem ser companheiros e interesses amorosos durante a aventura.
O título oferece uma experiência de mundo aberto limitada aos três atos. A exploração é livre dentro de cada um deles, mas depois de derrotar o chefe do segundo ato não é mais permitido voltar às áreas anteriores. Não existem missões secundárias, e praticamente tudo impacta de alguma forma no futuro, principalmente no terceiro ato – tanto que os desenvolvedores afirmaram que existem mais de 17 mil variações de finais, o que deixa a jornada muito mais personalizada e aumenta o fator replay do jogo. Dessa forma, são oferecidas tantas opções a ponto do jogo realmente dar a sensação de que estamos fazendo parte de uma aventura de tabuleiro.
É possível simplesmente avançar sem tomar decisões ou não se envolver até o final do segundo ato, mas a misteriosa voz que ajuda os heróis só permite o progresso depois de concluir uma das missões principais, e a mesma coisa no terceiro ato. Mas isso de forma alguma impacta com a sensação de liberdade.
O mundo de Baldur’s Gate 3 é complexo e vivo. Cada NPC, mesmo os de menor importância, possui sua própria história, vontades e personalidade, tornando cada diálogo único, o que dá vontade de se aproximar mais deles. Até mesmo os vilões são interessantíssimos e muito bem construídos – tanto que já vi muitas pessoas querendo que eles fossem interesses românticos, mas somente os personagens de origem que são.
Principalmente no ato final, onde existem muito mais pessoas, é possível escutar diálogos curiosos em todos os cantos que muitas vezes estão relacionados ao que está acontecendo atualmente, pois eles podem mudar conforme as missões são feitas. Além disso, o mapa de cada área é bem amplo, a exploração é premiada com situações inusitadas ou itens interessantes, contribuindo com a ambientação e a sensação de que a vida acontece fora das câmeras.
O personagem principal não possui falas, apenas alguns breves comentários. Seu alinhamento – o aspecto que define se ele é bom, neutro ou mal e leal ou caótico – é definido pelas escolhas de falas, que são frequentes e ocorrem até nos diálogos mais frívolos, somando à ambientação e sensação de propriedade que o jogador possui sobre seus heróis.
As escolhas de diálogos variam bastante e podem utilizar as Proficiências, como Intimidação e Persuasão e não são limitadas a falas, podendo ser algumas ações como Rir ou Somente Observar. Diálogos únicos podem ser acessados dependendo da construção do protagonista, como Raça e Classe, e isso é um aspecto de replay fantástico, pois torna única cada conversa.
Cada personagem de origem possui uma missão própria individual, que são secundárias caso não sejam o protagonista. Estes objetivos mais íntimos dão uma profundidade imensa, de forma que é muito fácil se afeiçoar a eles e ajudá-los a concluírem suas metas, que saem do clichê e trazem um frescor de novidade à narrativa. A única exceção é o Impulso Sombrio, pois ele pode ser escolhido somente como protagonista por seguir a história canônica.
Como disse, este texto é um pouco mais intimista. Cyberpunk 2077 foi profundo para mim, de uma forma triste, por causa mais da história e menos da jogabilidade; Xenoblade Chronicles 2 também, mas mais pela jogabilidade. Baldur’s Gate 3, por sua vez, é a mistura das duas sensações. Seu universo não é tão triste, mas a conclusão de sua história e dos muitos personagens podem ser dependendo das escolhas. Seu mérito está em sua narrativa e na forma de ser contada, diferente e inovadora em muitos pontos devido à sua complexidade, com uma teia de intrigas extremamente ampla e satisfatória. Complexidade essa que também está, até mais, em sua jogabilidade e nas infinitas possibilidades que a obra proporciona.
Acerto crítico
Aqui é um ponto difícil de abordar em um texto, tanto que existe um livro de 300 páginas que trata do assunto: o Livro do Jogador da 5ª Edição de Dungeons and Dragons, citado acima.
Começar e aprender a jogar D&D já é uma parte do próprio RPG. Além do livro básico, existem muitos outros que complementam regras, classes e subclasses, itens, raças e sub-raças, criaturas e um livro exclusivo para os Mestres. Depois, o segundo desafio começa: procurar e encontrar uma mesa que tenha consistência e que você goste, para criar uma ficha de personagem e, por fim, iniciar a jogatina. Ainda há o risco das personalidades não baterem e ter que fazer isso tudo de novo depois de algumas partidas.
A despeito de tudo que é necessário para iniciar um RPG de tabuleiro, Baldur’s Gate 3 mantém praticamente a mesma complexidade, mas só precisa de uma coisa para começar: vontade.
Com um game design primoroso e muito adequado à experiência do usuário, qualquer pessoa que tenha desejo suficiente consegue começar sua aventura. Existem inúmeras dicas que apresentam as complicadas mecânicas por trás das rolagens de dados de uma forma intuitiva. Essas informações aparecem em janelas de detalhes, e existe um comando somente para isso, facilitando muito para quem quiser lê-las.
Obviamente, não vou conseguir descrever como comumente faço em minhas análises, mas posso dar exemplos. Existem termos como Classe de Armadura, Classe de Dificuldade, Rolagem de Ataque, de Dano, entre outros, mas isso é simplificado com uma simples informação que aparece ao selecionar uma magia ou ataque e mirar no oponente: uma porcentagem que indica a chance de acerto, que é a Rolagem de Ataque.
Os dados, de fato, também são jogados, mas de forma oculta e aparecem no histórico, detalhando cada número e a matemática por trás das rolagens, que pode ser extensa e tem a ver com os atributos, habilidades próprias, perícias, proficiências, entre outros, mas o próprio jogo apresenta isso aos poucos por meio do game design. No fim das contas, o jogador precisa ser curioso e ler todas as informações disponíveis.
A visão dos personagens é isométrica e agradável, a câmera pode ser aproximada e girada como bem preferir, o que é importante na hora de se posicionar durante os combates, que são por turnos e seguem regras de movimentação, como nos RPGs táticos. Existem lutas o suficiente para não cansar e evitar que a exploração se torne tediosa, e são predeterminadas, mas algumas podem ocorrer ou não dependendo das escolhas nos diálogos e ações feitas nos NPCs, como furtos.
O combate varia bastante conforme as classes dos personagens, e existem muitas, mas muitas construções variadas, o que é um aspecto realmente positivo para o replay da obra, pois cada classe e subclasse são muito diferente entre elas, de forma que somente uma troca de equipamentos pode ser o suficiente para mudar completamente as mecânicas de combate. E mesmo com apenas quatro pessoas no grupo, cada construção e cada aventura são únicas.
“This House of Hope, your tomb”
Uma boa trilha musical, desde as canções até os mais simples sons com o objetivo de serem pequenos gatilhos sonoros, ajudam com a sensação de ambientação mais do que imagens. Sou uma pessoa bem sensível na questão de sons, que junto com as músicas, costumam me afetar muito e conseguem amplificar essa sensação de fazer parte e estar dentro do jogo.
Com uma trilha sonora de fazer inveja até nos clássicos da Nintendo, Baldur’s Gate 3 é primoroso também nesse quesito. Seguindo as lições de The Legend of Zelda: Breath of the Wild, a obra trabalha com o silêncio e com os sons na construção de sensações. Pequenos barulhos colaboram com o game design, que informam novas descobertas, dicas e armadilhas, por exemplo.
O som ambiente da praia colabora com a sensação de frescor, com o fogo no fundo lembrando do acidente. O silêncio ensurdecedor do segundo ato traz a desesperança de uma terra devastada pelas trevas; os sons do templo com eras de idade dão a sensação de desgaste.
A maioria das músicas seguem uma mesma base, inspirada na composição da tela inicial, e faz isso da mesma forma que Super Mario World, transformando essa base em um coral ou valsa, acrescentando um tom sinistro ou tons alegres, para que o jogador sempre a tenha na memória, dando uma vida mais longa às aventuras.
Existe uma música em particular que foge dessa base. Sua construção de clima é diferente, de uma forma que nunca vi nenhuma obra fazer igual de tão excelente! Em pouquíssimos jogos tive que pausar apenas para apreciar a maestria de uma composição, principalmente por causa da atmosfera que é criada até chegar nela. Os vídeos de reação ao vivo dessa música provam o quão esplêndido é o momento. Evitando spoilers, este espetáculo acontece na Casa da Esperança, no terceiro ato, mas a preparação para este épico começa logo no início de Baldur’s Gate 3. Inclusive, a composição é cantada, como uma ópera, pelos próprios dubladores dos personagens em questão. Essa parte alcança um nível estratosférico de excelência!
Cada um dos heróis principais possuem um sotaque, uma forma única de falar, com vícios de linguagem e uma semântica e trejeitos próprios, com destaque ao elfo vampiro Astarion e a Githyanki Lae’zel. Outro espetáculo acontece aqui, pois os atores tiveram que se esforçar ao máximo para representar essa particularidade, que foi executada com muito sucesso. Os detalhes são tantos que é possível saber seus sentimentos de acordo com suas expressões faciais, e eles estão, assim como outros pontos, em um nível superior comparado aos jogos de maior sucesso que conhecemos.
Cada ato possui uma temática principal de cenários, seguindo uma certa passagem de tempo também, que mantém todos os aspectos da obra em um nível épico. Existem paisagens que mostram a beleza do local, e detalhes inusitados que dão a sensação de que a vida acontece ou já aconteceu.
Apesar disso, ainda existem alguns problemas, principalmente no final, pois parece que não houve uma otimização na programação da cidade e arredores. Muitas vezes, vi bugs gráficos e de posicionamento, sendo necessário fazer uma viagem rápida até outro ponto próximo. Mas tais problemas não afetam de forma nenhuma a aventura, que se torna mais épica a cada objetivo concluído.
Ceremorfose
Mesmo sendo o jogo mais bem premiado da história, existem alguns problemas que precisam ser citados. A interface para os consoles, por exemplo, é dura e pouco otimizada, usa uma base de mouse para apontar as ações, mas para selecioná-las é necessário utilizar uma parca roda de habilidades/itens. Os ângulos da câmera muitas vezes não colaboram e “erram” a seleção. Ainda existem alguns bugs visuais, principalmente no terceiro ato, mas absolutamente nenhum destes problemas são grandes o suficiente para se tornarem um obstáculo.
Baldur’s Gate 3 entrou na minha lista de jogos mais influentes da vida, por ser um título com a mescla perfeita de narrativa, ambientação e jogabilidade. Furou inúmeras bolhas, sendo reconhecido e citado por pessoas sem vivência em games, e merece todo mérito que recebeu. Recomendo este espetáculo jogável para todas as pessoas que gostam de videogame!
Revisão: Julio Pinheiro
Cópia de Xbox Series X|S adquirida pelo autor