Não importa se o assunto é casamento, namoro ou amizade, relacionamentos são cheios de desafios. Além da tarefa de alinhar expectativas e aprender a respeitar a individualidade do outro, por vezes surgem pressões externas para elevar o nível de dificuldade. É com essa tônica que Haven, RPG de aventura com modo cooperativo local, usa um casal rebelde para debater temas como amor e liberdade.
Como qualquer obra de entretenimento, o jogo compartilha as visões de mundo de seus criadores e estimula reflexões. No entanto, o novo título da The Game Bakers se distancia das grandes produções que tomaram conta dos videogames.
Em Haven, o objetivo é oferecer uma jornada de forma leve, quase como uma retomada de fôlego entre histórias mais carregadas. O resultado é um jogo despretensioso que pode, ao mesmo tempo, ser cativante.
Desenvolvimento: The Game Bakers
Distribuição: The Game Bakers
Jogadores: 1-2 (local)
Gênero: RPG, Ação, Multiplayer
Classificação: 14 anos
Português: Legendas e interface
Plataformas: PS4, PS5, Xbox Series X/S, Xbox One, Switch e PC
Duração: 9.5 horas (campanha)/18 horas (100%)
Amar é se rebelar
De acordo com Emeric Thoa, diretor criativo por trás de Haven, a história é “como um Romeu e Julieta em que os protagonistas sobreviveram e fugiram”. Esse é o ponto de partida para os protagonistas Yu e Kay. Depois de uma bela abertura, que lembra bastante as animações japonesas, os dois amantes surgem na tela sem muita introdução. A propósito, mesmo sendo um RPG, Haven não se escora nas cenas cinemáticas, mas é cheio de diálogos. Aos poucos, os detalhes vão sendo salpicados para estabelecer a conexão com quem tem o destino dos protagonistas nas mãos.
Assim, descobre-se que os dois estão em um planeta pouco conhecido e supostamente deserto chamado Origem. Eles chegaram até ele depois de uma fuga apressada do Apiário – sistema planetário que governa o universo onde a história se desenrola. Mas o que motivou a rebelião de Yu e Kay? O sentimento entre os dois, que era impossível no Apiário. Assim, para eles, amar significa inevitavelmente se rebelar e desafiar as regras da sociedade. E, afinal, é possível “proibir” um sentimento?
Tomando emprestada essa discussão atemporal, Haven revisita clássicos. Enquanto os personagens flutuam sobre as paisagens gramadas de Origem, o jogador encara monstros, coleta recursos e tenta ajudá-los a salvar seu relacionamento das garras opressoras de um sistema de castas rígido.
Segue o fluxo
Em suma, o RPG da The Game Bakers é uma lufada de ar fresco em meio à narrativas densas que também buscam propor debates sobre temas diversos. No comando dos rebeldes, são testados os limites do amor, da liberdade e suas consequências. O efeito disso é ampliado pelo fato de que essa experiência pode ser compartilhada. Por meio de um modo cooperativo local, cada jogador assume o comando de um dos jovens rebeldes, seja em voo livre pelo mapa ou dentro das batalhas.
Além disso, as descobertas se dão de forma leve. Isso acontece tanto pelo voice acting impecável de Janine Harouni e Chris Lew Kum Hoi – atores que emprestam suas vozes a Yu e Kay – quanto pelo ambiente que cerca os personagens e como eles interagem. Durante sua passagem por Origem, o jogador raramente anda. A principal mecânica de Haven está na habilidade dos protagonistas de planar a centímetros do solo. Enquanto voam, eles usam correntes de fluxo azuis espalhadas pelas áreas do planeta para alcançar certos lugares e absorver energia.
Faça amor, não faça guerra
Mas, além dos perseguidores no encalço dos personagens, existe uma substância se espalhando pelo planeta e corrompendo seus habitantes. Como resultado, os exploradores são obrigados a encarar batalhas contra a fauna local. Tendo em vista que essa hostilidade não é natural, Yu e Kay não lutam com intenção de matar, mas sim de pacificar seus ocasionais inimigos. Tudo isso oferece os elementos ideias para que Haven estabeleça um sistema de combate um tanto peculiar. Com ações designadas a cada direcional/botão do controle, o jogador precisa carregar cada comando por alguns segundos.
Em contrapartida, cada membro do bestiário de Origem reage de forma distinta ao tipo de ataque e ao timing do impacto. Pode parecer complexo, mas a mecânica é bastante intuitiva e acessível para diferentes perfis de jogador. E é ela que dita a dificuldade, já que logo de início Haven se declara como um jogo suave, focado na narrativa. No fim, o desafio real está na capacidade de se familiarizar às fraquezas de cada inimigo, captar dicas a partir das reações dos protagonistas em cada batalha e ter paciência e estratégia para encontrar o momento certo de atacar.
A narrativa é tudo
Não há complicações desnecessárias no jogo. Ainda assim, a história envolve e instiga o jogador – ou jogadores – que se dedica a guiar o casal em busca de um lugar onde eles possam ser livres.Isso, porém, é também o principal ponto fraco de Haven. Como em qualquer RPG, existem vários itens a serem colecionados pelo planeta, missões secundárias e até desafios adicionais. A questão é que a movimentação limitada, a repetição da trilha sonora e a necessidade de vasculhar cada área do mapa atrás de itens podem tornar a navegação maçante.
Outro detalhe importante é o fato de as batalhas não terem ligação direta com a evolução dos personagens. Traduzida como o fortalecimento da relação entre os dois, ela é conquistada de forma mais efetiva avançando na história e gerando mais cenas amorosas. Sendo assim, as maiores quantidades de experiência vêm dos momentos focados no relacionamento de Yu e Kay. Cozinhar juntos, conversar ao redor de uma fogueira, reparar o Ninho – nave que usam como casa – e dormir são o foco nesse ponto.
Depois de algumas horas, passar por várias áreas em busca de algo que ficou para trás se torna desinteressante. Mesmo com alguns atalhos e dicas no mapa, é mais fácil ignorar as tarefas. Ainda assim, o jogador que se entregar à história eventualmente vai querer salvar os seres pacíficos de Origem. Mais do que isso, ele provavelmente até sentirá satisfação em apenas planar por aí cumprindo seu objetivo.
Vale curtir o paraíso
A história de Yu e Kay é sobre amor, mas também sobre liberdade. Nesse contexto, esquecer a missão principal para simplesmente apreciar o cenário e se integrar despreocupadamente a Origem pode ser libertador. Sem dúvida é o que os dois amantes gostariam de fazer não fosse pela pressão do Apiário. Além disso, essa dedicação eventualmente pode ensinar uma coisa ou duas sobre como aprender a conviver com limites, sejam eles os da mecânica do jogo ou os da pessoa com quem o jogador divide essa e outras jornadas.
Se por um lado Haven não foi feito para sobrecarregar o jogador com dilemas morais, por outro está longe de ser uma experiência sem reflexões. No fim, cada lição que pode ser retirada da história de Yu e Kay é quase um presente.
Cópia de PS5 cedida pelos produtores
Revisão: Jason Ming Hong