Overboard! capa

Review Overboard! (Switch) – O peso da culpa como nunca visto antes

Madrugada de 3 para 4 de julho de 1935. Veronica Villensey, uma atriz e socialite decadente, está em viagem para Nova York, junto com seu marido, Malcom. Ao saírem para um passeio noturno no deck, a atriz cumpre seu plano e atira o cônjuge nas águas do Atlântico norte – curiosamente num lugar próximo ao naufrágio do Titanic – para, a princípio, nunca mais vê-lo. Como se sabe disso tudo? Bem… foi você quem cometeu o crime. Todos a bordo. Assim começa a mais nova aventura espirituosa da Inkle para o Switch, Overboard!

A premissa do game inverte completamente a perspectiva dos jogos de detetive tradicionais que já conhecemos. Ao invés de desvendar o real culpado, você encarna a própria meliante. No lugar de um tradicional e manjadíssimo mocinho salvador, temos uma vilã gélida e apática. Você é a culpada, e seu objetivo é mascarar o assassinato do próprio marido para conseguir sua herança, ou ao menos desembarcar impune nas terras do novo mundo – ainda que esse seja um mundo que ainda sofre com a Grande Depressão (e as portas de uma Guerra).

Desenvolvimento: Inkle
Distribuição: Nintendo
Jogadores: 1 (local)
Gênero: Ação, Suspense
Classificação: 14 anos
Português: Não
Plataformas: PC, Switch, Android, iOS
Duração: 3.5 horas (campanha)/4.5 horas (100%)

Viúva-negra

Cena inicial de Overboard!

Veronica, recém casada com o Sr. Villesney, embarca do Reino Unido para os EUA, num navio aparentemente pequeno, quando levado em conta o tamanho da sua jornada. Além do casal, temos outros seis tripulantes a bordo, além do timoneiro reserva, o jovem steward – uma espécie de comissário de bordo, alguns personagens misteriosos – e a presença Divina, um tanto quanto… objetiva (e definitivamente uma das partes mais hilárias do jogo). No começo de toda sessão, você acorda em seu quarto às 8h da manhã, com o aviso do comissário.

Durante o último dia, você tem cerca de oito horas para criar uma trama, escolhendo sempre as respostas certas, arquitetando sua melhor mentira para enganar a todos os tripulantes restantes. Isso se você não incriminar, ou atirar ao mar, mais um deles. Ou matar a si própria (não faça isso, a presença Divina vai ficar com raiva). Ou os três. O ás do jogo é sempre ter uma mesma versão em mente. Cada um dos personagens é estritamente atento a todos os seus diálogos, então certamente não é uma boa ideia dizer que acordou com o seu marido e, horas depois, dizer que o mesmo se jogou no mar à surdina da noite sem você saber, por exemplo.

Senhora do destino

A presença Divina pode dar dicas indiretas sobre o jogo

Ao epílogo de cada sessão, você tem a opção de reiniciar a história a partir do momento do assassinato. Mas pode ficar tranquilo. Overboard! tem três funções essenciais que tornam muito mais prática a sua tomada de decisão. Ao recomeçar, ele te orienta com um marcador em verde qual foi sua última resposta a uma pergunta, caso esta já tenha sido direcionada a você. Para quem quer tentar um caminho completamente diferente, isso acaba sendo uma mão na roda. Ou, caso você queira escolher o mesmo diálogo e já saiba exatamente o que o jogo diz, ao apertar ZR é possível usar uma espécie de fast forward, ou seja, acelerar a fala. Além disso, há uma forma de “rebobinar” a cena, caso tenha respondido algo por engano, ou repensado logo em seguida. Isso ajuda Veronica a se esgueirar de uma resposta incriminadora, ou que possa colocar em risco o caminho escolhido pelo jogador.

Para quem está imerso na história (o que não é nem de longe difícil), você facilmente entra no personagem da Srta. Villesney. A sensação de desespero e culpa que o jogo passa ao falar com os demais tripulantes é muito realista, ainda mais quando você nunca matou ninguém na vida real e não sabe como se portar na ocasião- ao menos espero que seja o caso da maioria.

Todos os personagens parecem ter uma sensação de desconfiança, mas principalmente de você. Afinal, Veronica é a viúva dele, e é um fato facilmente reconhecido que o relacionamento de ambos não era nem de longe um mar de rosas. Conversar com os tripulantes do navio passa sempre uma impressão de que eles sabem das suas ações, quando, na verdade, ninguém tem certeza absoluta do que ocorreu – só você e Deus (o único que não vira a casaca para você).

Muitas vezes, você é tentado a entregar o jogo e se abrir com alguém no navio. A pessoa pode se tornar sua cúmplice, ou descaradamente te entregar e mandar você em cana. Sua percepção da personalidade de cada um, em relação ao seu comportamento, é o que vai definir seu futuro. E essa é apenas uma das muitas possibilidades que podem ocorrer durante o jogo, para se ter uma mínima compreensão do quanto você pode (perdão o trocadilho) se afundar na história.

Simples e profundo

Suas alegações são lembradas pelos tripulantes - mantenha sempre um discurso consistente

Como toda visual novel, Overboard! não tem gráficos estonteantes, nem cenas de ação em sabe-se lá a quantos frames por segundo, ou qualquer outro requinte gamer moderno. Mas como toda visual novel da Inkle, é um jogo que deve ser jogado atentamente, dada a sua narrativa riquíssima e praticamente infindável. Você pode até fazer a sua história uma única vez, claro, mas isso é basicamente jogar no lixo todas as variáveis que a trama pode apresentar, e obviamente, seu estimado dinheiro. Cada rodada do “livro interativo” tem entre 30 minutos e uma hora, a depender do seu tempo de resposta e do seu caminho na teia de possibilidades.

Como já dito acima, a parte gráfica não ostenta nenhum modelo 3D ultra-renderizado, o que nesse caso é excelente. As artes, muito mais adequadas para o contexto daqui, têm traços leves e igualmente expressivos. A similaridade do design de Veronica Villesney com Carmen Sandiego (outra notória criminosa do mundo dos jogos) é gritante. O conjunto chapéu Panamá, vestido vermelho e luvas parece ser o equivalente feminino da moda gângster.

Interagir com os demais tripulantes pode ser uma forma de conseguir o silêncio deles

Algo muito notório que deve ser levado em conta é a perspectiva da abordagem de uma morte por lá. Ao contrário da maioria dos jogos, em que matar é apenas uma banalidade, em Overboard! a responsabilidade de uma vida é elevada a outro nível. Em vários diálogos, a relevância da morte de Malcom é expressa, e o jogador frequentemente é convidado a repensar suas atitudes em relação ao ocorrido. Quem jogou 80 Days vai assimilar isso muito bem com o episódio do veleiro experimental Noelani, na rota de Yokohama a Honolulu

A trilha sonora, majoritariamente pautada em músicas da época dos cilindros de cera (anterior até mesmo ao vinil) pode lembrar fortemente o mundo de Cuphead aos jogadores de primeira viagem. Ironicamente, pasmem: ambos se passam no mesmo período! A depender da delicadeza da situação, e da cabine que você visitar, o tom pode oscilar de algo “alegre” para uma música bem sóbria, dando a ambientação perfeita à situação. Apesar de Overboard! declarar uma dublagem logo na primeira cena – e consequentemente subir ao máximo a expectativa – ela se revela bem escassa durante a sessão, o que, apesar de ser compreensível, tira um pouco do brilho inicialmente esperado do jogo.

Uma grata surpresa

Além do próprio enredo intrigante e instigante, Overboard! tem uma história de produção um tanto quanto única. Idealizado no início por Jon Ingold, um dos envolvidos na criação do lendário 80 Days – talvez a melhor visual novel de todos os tempos, bem como de outros títulos da Inkle -, o jogo não teve absolutamente nenhuma forma de divulgação. Ele foi produzido (quase que) completamente em segredo e lançado em junho para PC, Switch e mobile.

O “quase que” acima se deve majoritariamente a uma história quase que anedótica. Jon já havia anunciado o jogo via Twitter… em um primeiro de abril. A confusão quanto à veracidade do post aumentou ainda mais o fator surpresa – que se converteu em uma estratégia de marketing singular. No seu lançamento, justamente por não ter sido esperado por ninguém, Overboard! teve vendas consistentes e crescentes ao longo do tempo, algo difícil de ocorrer, ainda mais se tratando de uma produtora independente.

Variavelmente importante, é notório ressaltar que ainda que os diálogos sejam um tanto quanto mais simples que os apresentados em outros jogos da empresa, devido à preocupação dos produtores com a organização e uma eventual descaracterização do enredo, Overboard! segue sendo distribuído exclusivamente em inglês.

Overboard! é uma aventura pela qual absolutamente ninguém pediu, e justamente por isso se tornou uma surpresa extremamente grata. A temática vintage, com referências sutis e certeiras ao período histórico escolhido, é um ponto extra. Ainda que os finais pareçam um tanto quanto simples em demasia, isso é compensado com uma aventura rápida, diversa e ao mesmo tempo, imersiva, de uma perspectiva completamente nova para os tradicionais e repetitivos jogos de detetive. Matar um personagem virtual nunca deu tanto frio na espinha como aqui. 

Cópia de Switch cedida pelos produtores

Revisão: Jason Ming Hong

Overboard!

8.5

Nota Final

8.5/10

Prós

  • Ambientação exímia
  • Enredo envolvente
  • Muitas possibilidades de desfecho
  • Jogo curto, porém denso em enredo
  • “Sensação de culpa” que incorpora o jogador à personagem

Contras

  • Alguns diálogos parecem vagos, a depender do momento
  • Os finais possíveis poderiam ser mais bem trabalhados