Determinadas condições psicológicas vêm ganhando representações na cultura popular. Os transtornos neurodivergentes têm sido amplamente divulgados, com diagnósticos mais acessíveis, além de um melhor aceitamento social e facilitações por meio da saúde pública. Assim, Hellblade: Senua’s Sacrifice aborda uma condição que é mais comum para vilões do que para os heróis das histórias: a psicose. Acompanhe conosco sua análise.
Desenvolvimento: Ninja Theory
Distribuição: Ninja Theory
Jogadores: 1 (local)
Gênero: Ação, Aventura, Terror
Classificação: 14 anos (violência, linguagem imprópria)
Português: Legendas e interface
Plataforma: Xbox Series X|S, Xbox One, PC, Nintendo Switch, PS4, PS5
Duração: 7 horas (campanha)/9 horas (100%)
Vozes na escuridão

Senua parte em um barco com o objetivo de negociar com Hela para que a alma de seu amado Dillion seja salva da maldição que ela acredita possuir, buscando redenção e amor por meio de seu sacrifício.
A guerreira chega em Hel acompanhada de suas várias vozes, que agem como amigas e inimigas, muitas vezes duvidando dela, mentindo ou até mesmo ajudando. A ilha não parece ser um lugar que está dentro da existência física, e a realidade é questionada em vários momentos, colocando a sanidade de Senua totalmente em xeque.
Depois de encontrar o corpo de Druth, um antigo amigo, sua personalidade, seus conhecimentos e sua voz se mesclam às outras que a heroína ouve, não sendo claro se ele representa uma voz mais sã ou mais insana.

Com a ajuda de Druth e das vozes, ou com suas próprias forças ignorando as conversas, Senua passa por quebra-cabeças que referenciam os sofrimentos de sua vida, como isolamento na escuridão, um incêndio em sua vila e uma praga. Durante a aventura, ela vai entendendo sobre o mundo e sua cultura, que se misturam a sua realidade no momento e são desafios que colocam seus objetivos em risco.
Senua é muito forte fisicamente, uma guerreira poderosa. Aparentemente, os embates contra seus medos solidificados são uma parte da superação e se tornam fáceis no mundo real, mas extremamente difíceis em sua mente fragmentada.

Hellblade: Senua’s Sacrifice é um pouco amargo e cansativo na forma de contar sua história. Por mais que o enredo seja muito bom, indo além do óbvio, a narrativa não é uma soma a jogabilidade por ser, de certa forma, perturbadora psicologicamente – o que parece ser proposital.
Existem lapsos de imagens com formas de iluminação e escolhas de cores, ângulos e cenas rápidas que tornam os momentos da narrativa um pouco pesados e duros de se assistir. A psicose da personagem é o principal elemento narrativo, e isso torna a obra um primor nesse quesito, ao custo de que poucas pessoas consigam lidar com o jogo.
O jogador é exposto às perturbações de Senua e, ao mesmo tempo, de si próprio, o que é ótimo para quem simplesmente ignora seu estado mental e emocional, mas péssimo para quem sabe o que está acontecendo dentro de si.
Uma guerreira nata

Senua, além de uma exímia guerreira, possui a capacidade de encontrar portais que abrem lugares antes fechados e runas ocultas que funcionam como chaves, além de tornar reais algumas miragens que desobstruem seus caminhos. Basicamente, o jogador deve explorar o cenário para formar alguma runa ou caminho através da alteração do ângulo da câmera, mesclando objetos como sombras, colunas ou árvores ou até mesmo uma junção de fragmentos no ar que formam uma ponte caso visto de cima, por exemplo.
Esta mecânica, por mais que faça sentido dentro da história, é a única forma de avançar no jogo. No entanto, com o tempo se torna chato e previsível simplesmente resolver quebra-cabeças de variação de ângulo da câmera, apesar deles ocorrerem de diversas formas, misturando elementos que variam conforme o momento da aventura.
A exploração do ambiente se resume a resolver enigmas e, ocasionalmente, encontrar totens que contam sobre o mundo, cultura e mitologia. Por ser repetitivo, explorar não recompensa o jogador, desmotivando-o a continuar.

O combate de Hellblade: Senua’s Sacrifice segue um padrão soulslike, mas é muito menos punitivo e mais fácil de acertar os parries, ou seja, mais agradável. Cada golpe, contra-ataque ou empurrão mostra o quanto a guerreira é poderosa, mesmo enfrentando a personificação de deuses antigos. Durante o título, é perceptível que não existe um desafio real em termos físicos.
São poucos os encontros com criaturas, o que é bem positivo para tornar o combate um momento de recompensa. Até para os jogadores que dominam as técnicas, é satisfatório exterminar lentamente um grupo de inimigos. Entretanto, o mal do título é a repetição, e isso ocorre nos combates, principalmente quando a aventura está próxima de seu fim.
A verdadeira dificuldade da obra, entretanto, está em superar a sensação de repetição na jogabilidade e os momentos amargos da narrativa.
Como um filme jogável

Hellblade: Senua’s Sacrifice é um primor artístico devido ao seu audiovisual. As vozes e muitos sons se assemelham a um ASMR – que, particularmente, tenho uma certa repulsa, mas não é de uma maneira que me desagrada, pois acaba sendo estranhamente satisfatório. E vai além disso, os sons que representam uma crise psicótica cumprem com o propósito de serem desagradáveis.
Da mesma maneira, as texturas das pessoas, criaturas e cenários tem um nível de detalhamento incrível, fazendo jus a geração atual de consoles e talvez até para a próxima. As criaturas são muito detalhadas, principalmente os chefes, que proporcionam um desafio recompensador.
O sacrifício de Senua e do jogador
Os videogames são uma expressão artística. Às vezes, é necessário ter um certo fundamento anterior para conseguir entender uma obra, o que pode tornar sua compreensão exclusiva para algumas pessoas. Hellblade: Senua’s Sacrifice é um exemplo de um jogo em que é necessário essa base anterior e a habilidade da contemplação para perceber suas nuances, e mesmo assim, sua conclusão permanece dúbia. É um título que respeita o conhecimento do jogador ao mesmo tempo que o desafia a compreender sua história e a si mesmo, e deve ser jogado lentamente.
Recomendo-o para quem gosta de filmes cult, para quem gosta de jornadas contemplativas e para quem consegue abstrair bem seus sentimentos em uma aventura tortuosa, mas que consegue entreter.
Cópia de Xbox Series X|S adquirida através do Game Pass
Revisão: Julio Pinheiro